Recomeça o movimento. Já passa das duas da tarde quando cruzo novamente o areal de Los Cóbanos. Ao fim da praia, o caminho que me leva até ao autocarro que me leva até Sonsonate que me leva de regresso a Santa Ana. Curioso regressar em plena viagem a um lugar onde já havia estado. Há uma certa familiariedade, as ruas nao tem segredos e encontro facilmente os lugares que procuro. Fico em Santa Ana por uma noite e sigo viagem no dia seguinte.
O autocarro 236 demora quase uma hora e meia desde Santa Ana até San Cristóbal, 40 quilómetros de viagem. San Cristóbal é a última paragem, a fronteira com a Guatemala. Tal como quando havia aqui chegado, abandono El Salvador a pé. À imagem do país, o último guarda no último posto de controlo brinda-me com a sua simpatia, cordialidade e profissionalismo. "Buen' viaje, que le vaya bién!..." Nao consigo descrever bem o que sinto ao deixar El Salvador, um lugar onde encontrei sobretudo uma maneira de ser e de estar nas pessoas que jamais esquecerei. Talvez só este brilho que levo por dentro possa explicar o que foi esta experiencia.
Assim que entro na Guatemala, encontro uma fila de autocarros que parecem estar ali à minha espera. Há pouca gente e, uma vez mais, nem um estrangeiro ou turista. "Guate! Guate!" grita um rapaz ao estilo dos habituais "revisores" improvisados que nos instingam a entrar no seu autocarro. Fazem-nos tantas vezes que chego a pensar se estarao a tentar convencer as pessoas a irem até Guate em vez de simplesmente anunciar para onde vao, como se fosse possível alguém passar por aqui em passo indeciso e dizer "Nao sei para onde vou, estou à procura de um destino. Guate? Parece-me bem..."
Pouco tempo depois, arrancamos rumo à capital. Fazemos apenas uma grande paragem, em Juatape, uma pequena cidade. O autocarro pára no meio do mercado e demoramos mais de uma hora a sair dali. Tempo mais que suficiente para que entre muito mais gente e toda a espécie de vendedores. Os assentos ficam todos ocupados, mas as pessoas continuam a entrar. Penso na viagem entre El Poy e Metapán. Será que as pessoas vao viajar de pé mais duas horas? Há aqui idosos e idosas, mulheres com crianças ao colo. Nao, nada disso, sosseguem os espíritos mais forasteiros. Prontamente, o "revisor" avança pelo corredor com uma mao cheia de bancos de plástico nos braços. Calma e organizadamente, estes assentos improvisados sao dispostos pelo corredor. A viagem continua, nem um só queixume ou lamento. O melhor, todavia, ainda está para vir. Estamos já a abandonar o terminal e o mercado quando entra um último passageiro: um palhaço. Sim, um palhaço. De cabeleira às cores, nariz vermelho redondo e calças e suspensórios a condizer, tudo como manda o figurino. Faz-se de tudo para ganhar a vida nestas paragens, mas isto ultrapassa expectativas. Os autocarros e os terminais sao normalmente lugares sujos e agitados, cheios de gente que vende de tudo, desde remédios milagrosos para as dores de cabeça até refeiçoes completas, passando por fruta, amendoins, pastilhas elásticas, jornais, tamales, pupusas e outros que tais. É um vai-vém constante que só termina quando o autocarro se afasta das cidades ou vilas, dado que muitos permanecem lá dentro até ao limite das povoaçoes (imaginem isto num autocarro cheio...). O palhaço, no entanto, fica por aqui até à cidade seguinte. Compenetrado na sua performance, fala com uma rapidez extraordinária e com a voz aguda, à maneira dos palhaços. Nao consigo entender metade do que diz, mas deve ser talentoso, já que as gargalhadas sao gerais. As crianças, claro, permanecem em silencio, fascinadas. Quando termina o seu número, o palhaço percorre o corredor e vai recebendo as moedas que quase toda a gente lhe oferece. Sai entao na cidade seguinte, quiçá pronto a esperar um outro autocarro onde possa repetir as graças e anedotas que lhe darao conforto ao estomago.
Chegamos a Guate - Ciudad Guatemala - ao princípio da tarde. Pela primeira vez desde o início desta viagem sinto-me de facto desconfortável. A cidade é imensa e nela habitam claramente dois mundos. Um deles é o mundo do consumismo, próprio das grandes cidades. Conto pelo menos tres McDonald's, quatro Domino's Pizza e vários centros comerciais desde a estrada que entra na cidade até ao terminal. Passamos pelo zona 13, zona 11, zona 10, bairros residenciais e comerciais iguais a tantos outros, alguns com um aspecto bastante agradável até. A viagem termina na zona 9 e daqui em diante começa uma outra Guate. À volta do terminal, ruas moribundas e gente de olhar passivo. Avanço devagar e atento. Estou sozinho, de mochila às costas e nao faço ideia onde estou ou como sair dali. Mais do que isso, sinto-me incomodado com o ambiente à minha volta, sem saber bem explicar porque. Caminhar devagar, como sempre, ajuda-me a manter a cabeça fria, a prestar atençao e a encontrar o que preciso. Chego a uma praça onde estao estacionados alguns táxis. Sei os riscos que corro se ficar por ali às voltas a tentar encontrar o meu rumo. Dirijo-me a um dos taxistas e pergunto-lhe onde posso apanhar um transporte para Antigua, o meu destino final, cidade talisma da Guatemala e património mundial. O taxista leva-me até um outro terminal, já na zona 3, muito perto do centro. O que vejo pelo caminho nao cabe na objectiva das viagens idílicas. Nao é que seja horrível, nao é que seja demasiado agressivo ou assustador. É simplesmente duro, a realidade da maior cidade da América Central.
Por fim, apanho o terceiro autocarro do dia, de novo um velho "school bus" Chego a Antigua ao fim da tarde, o sol brilha timidamente entre as nuvens e os tres vulcoes que circundam esta antiga cidade colonial. Cai a noite e com ela a chuva.
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