quinta-feira, fevereiro 19

Um segundo de vida

A casa do Cruz ficava a duas ruas da minha. Mesmo ao lado da junta de freguesia, ali ao largo do rossio, a poucos metros da igreja velha. Ao centro da vila, portanto. Ia lá todos os dias, todas as manhãs, todas as vezes que podia, todas as vezes que a rua e praia não nos chamavam para nos levar mais longe na imaginação da infância. As tardes passávamo-las pedalando por entre canas e caminhos de terra, quando a aventura não nos levava até ao outro lado do rio.

(do outro lado do rio está uma casa cor-de-rosa. Ainda lá está e ninguém sabe muito bem de onde veio ou quem por lá morou. Fica só, a casa, por cima do outro lado do rio, de frente para a foz onde o mar se abandona.)

Éramos amigos pois, eu e o Cruz a crescermos juntos sem saber que crescíamos. Éramos crianças e o Cruz tinha uma madrinha. Senhora de cabelo branco e ar austero, saía ao princípio da manhã para ir à igreja, depois à praça, o passo curto não adivinhava a sua autoridade.

(sempre de cabelo branco. Conheço o Cruz há trinta anos e a madrinha de cabelo branco.)

Deu-se o caso de a porta da casa do Cruz ser feita de ferro e de vidro. Um vidro grosso e fosco, daqueles que deixam ver formas sem que lhes possamos adivinhar a identidade. O Cruz queria fechar, eu queria abrir. Ou talvez o contrário (nestas coisas de brincadeiras de rapazes não há inocentes). Alguém cede, alguém não aguenta, alguém resolve que é tempo de parar. Dois rapazes confrontando a força no intermédio de uma porta. Um deles, o que está mais perto da saída, recua um, dois passos. O suficiente. A porta bate com um estrondo de trovões, o ferro chiando como um cão maltratado. Vidro. Milhares de cacos a meus pés, aos pés do Cruz, ele e eu entreolhando-nos por entre o ferro e a ruína. Os dois em silêncios simultâneos que adivinham pensamentos. Quanto tempo até que a madrinha volte? Quanto tempo até que a minha avó descubra?

(a minha avó não tinha cabelos brancos. Não precisava deles para fazer de mim neto no temor de ser criança.)

É desta, pensamos. Acabaram as brincadeiras, acabaram as férias, acabou o Verão, acabou a vida. Eu e o Cruz entreolhando-nos por entre o ferro e a ruína, a sentir o coração estacar, a pedir perdão por todos os pecados do mundo.

(eu juro, vó, eu juro que vou ser bom outra vez. Por favor deixa-me ir dar mergulhos do cais, eu prometo que jogo contigo à bisca dos nove todas as noites daqui até ao sempre que tu quiseres.)

E a madrinha ao fundo da rua. Já lá vem, já a vimos. O vidro que não é vidro, antes ruína aos nossos pés, o prenúncio do castigo depois do crime. E se colássemos isto com fita-cola? E se nos fingíssemos desmaiados? E se morrêssemos e fugíssemos para a igreja?

O cabelo branco reflecte o sol, um ponto diamante no horizonte imediato. Não há rossio, não há junta de freguesia, não há mais nada a não ser a madrinha. Se ao menos pudesse encher o peito e ser homem já. Respirar fundo e enfrentar a tragédia eminente. Se ao menos pudesse voltar atrás no tempo e colar o vidro com as minhas mãos de homem sem medo.

(a minha avó arruma o baralho de cartas. Vai lá para o cais. Não venhas tarde.)

quinta-feira, fevereiro 12

Instante de perda em noite de regresso

O fogo na lareira quando se agita aquece a pedra. Lembra a alma que nos enche por dentro, a vida que temos em nós e que não aquece se a deixamos morrer. A chuva vem de longe e atinge a casa com uma violência de guerras. A água escorre por dentro da pedra mas não chega a tocar o chão. Antes disso está o fogo que se agita e aquece o olhar perdido nas labaredas dançando sobre a pedra. Lá fora, o mundo em silêncio apenas sussurra na voz do mar ao longe. As ondas rebentam nas rochas e anunciam o temporal que abafa a vila como um beijo apaixonado e fugaz. Pela chaminé, vem o vento que empurra o fumo para dentro até sair de novo levando consigo o cheiro da casa. Ao canto da sala, o cão dorme aquecido pela pedra e pelo fogo e pela água. Nem um som aqui dentro, apenas o arfar do cão sonhando (há pouco, um latido contido como se fora sonâmbulo).
A casa crepita com o gosto do fogo. O copo tomba sobre o sofá na vertigem do meu sono, deixando à vista o cheiro do álcool e dos cigarros. Ao canto, o cão não se mexe, apenas um suspiro ao encontro do odor familiar da casa.
(lá em cima no quarto havia um corpo. Um corpo que era fogo e que agora é apenas memória de cinza. Se me tocava, era a água correndo fria no interior da pedra quente. Se desaparecia, o corpo era este silêncio longínquo do mar anunciando o temporal.)
Caio no sono e no sonho e então o temporal é noite clara e este país estranho perdido no fundo do mapa. Não entendo a língua, não sei que me diz esta gente que me indica um rumo sem saber para onde vão. Tenho de continuar a andar. Peço ajuda às estrelas para que me mostrem o caminho. Como um rei mago, como um rei vago tacteando às cegas a luz da salvação. As estrelas sorriem-me num rosto de infância. O rosto que estende um beijo antes de me puxar e fazer voar por cima das ondas que anunciam a tempestade.
(estou do outro lado do mundo.)
A água escorre por dentro da pedra e acorda o cão. Ouço as patas troteando sobre o soalho antes da humidade me tocar o rosto. Nos olhos recebo a luz da manhã num espanto de novidade. A noite passou e lá fora o mundo sossega com o anunciar de um novo dia. Não escuto o mar por isso adivinho o fim da tempestade.
(do outro lado do mundo havia um corpo. Se me beijava era o vento puxando o fumo levando consigo o meu cheiro.)
Chego à porta e sinto a força do recomeço. O milagre está nas estrelas. Eu estou aqui.

domingo, fevereiro 8

Tempo

Tempo. Para pensar, para reflectir, para decidir. Tempo para fazer sentido do que acontece, tempo para conhecer a profundidade de uma escolha. Tempo para sentir uma paixão, tempo para viver uma verdade. De contrário, nada disto. O tempo que é de hoje é a falta constante de tempo, o apressar desesperado do desconhecido. Tudo a correr. Relações, trabalho, família, nós próprios. Corremos atrás de quê? Do sucesso, da carreira, do prazer, das sensações? Corremos para chegar primeiro? Onde?