Manha. Nueva Ocotepeque. Apanho um colectivo, uma pequena carrinha onde parecem caber mais sacos e alcofas cheias de fruta e vegetais que pessoas. Há quem leve uma cama e estamos a falar de uma pequena Toyota Hiace. Vale que vou junto à janela e a distância é curta. Meia hora depois estou em El Poy, a fronteira entre Honduras e El Salvador. O colectivo pára do lado de cá e começo a caminhar entre barracas, guardas armados, cancelas e montes feitos de pedras. É preciso nao esquecer que estes dois países já estiveram em guerra, que existem ainda inúmeras disputas quanto aos limites fronteiriços entre eles. Nao se vê um único estrangeiro, sou só eu, caminhando de mochila às costas por entre este amontoado de história e de gente que cruza uma simples linha desenhada num qualquer mapa.
Chego a El Salvador a pé. Primeiro posto de controlo, um homem de sorriso e rosto abertos aproxima-se de mim com um molho de dólares na mao e pergunta-me se quero trocar lempiras. Quero, mas o homem recusa-se a trocar apenas o meu dinheiro. Conversamos sobre de onde venho, para onde vou. Um guarda aproxima-se e pede-me o passaporte. Comecamos os tres a conversar. Tinham-me dito que o melhor de El Salvador sao as pessoas, mas isto é quase ridículo. Andei cem metros, estas sao as primeiras pessoas com quem falo, mas a diferença é realmente impossível de negar. E é de notar que nas Honduras já havia experimentado uma hospitalidade fora do comum. A razao talvez esteja no facto de El Salvador estar ainda totalmente imune ao turismo. O homem troca-me o dinheiro e despede-se com um caloroso aperto de mao, o guarda dá-me permissao para avancar, mas nao me manda fazê-lo. Passo um lugar que mais parece terra de ninguém, onde apenas um longo pavilhao azul e branco subsiste. Do outro lado, há outra cancela. Os guardas olham-me mas ninguém me manda parar. Continuo.
Um rapaz numa moto-táxi leva-me até Citalá, uma pequena aldeia a um quilómetro de El Poy onde posso apanhar o autocarro para Metapán e seguir viagem. Faltam ainda mais de duas horas para essa partida, procuro um lugar para comer. Cruzo a praça meio deserta onde se ergue a igreja, um autêntico extra-terrestre de mochila às costas no meio de outro mundo. Há paredes e casas pintadas com letras e desenhos que lembram as lutas de outros tempos, a guerra civil que terminou em 1992 e que se estima ter matado mais de 75.000 pessoas. Reflicto que a maioria das pessoas à minha volta deve ter alguma recordaçao da guerra, que deve ser algo ainda bem presente na memória deste povo e que é isso mesmo que as pinturas murais nao deixam esquecer.
Chego a um pequeno restaurante totalmente vazio, mas com um aspecto familiar e arrumado num pátio interior cheio de sombras. Um velho usando um chapéu de vaqueiro vem à porta e pergunta-me o que procuro, o que preciso. Estende-me de imediato a mao e convida-me a entrar. Já estou a comer quando vem sentar-se comigo. Chama-se Santiago Pinto, 77 anos, a vida ganhou-a na "ganadería". Quer saber o que faço, onde vivo, qual é o idioma do meu país, se tenho noiva ou namorada, se caso em breve, quanto tempo tenho de férias, quanto ganho como professor, qual a moeda do meu país, se o governo do meu país me ajuda a mim ou aos meus alunos, porque viajo. Despede-se de mim com um "Que Diós lo bendiga" que é uma verdadeira bençao. Mando às favas a minha condiçao de ateu e respondo "Que Diós lo bendiga a usted también". Sabe-me bem dizê-lo.
Autocarro para Metapán. Outra vez um velho school bus. Falta mais de meia hora para que parta, mas Santiago diz-me para ir já. Quando lá chego percebo. Ao entrar já só existem meia-dúzia de lugares livres. Há sobretudo crianças e jovens, algumas mulheres. Sento-me mesmo a tempo, dez minutos depois o corredor comeca a ficar assustadoramente cheio. Faltam ainda vinte minutos para o autocarro partir e as pessoas continuam a entrar. Quando finalmente partimos, já todo o meu conceito de sardinha em lata se alterou para sempre. A viagem até Metapán durará tres horas e meia por entre estradas de montanha. Tres horas e meia e dezenas de pessoas de pé. Ninguém protesta.
Juan, sentado ao meu lado, informa-me da duraçao da viagem e diz-me com uma gargalhada "Que vamos fazer? Se sair e for a pé canso-me ao fim de um quilómetro!" Juan vai juntamente com doze amigos seus a um encontro de jovens evangelistas em Metapán. Pergunta-me se conheço a Bíblia e diz-me que para os evangélicos o estudo da Bíblia é essencial. Também me diz que cresceu católico, mas que há poucos anos atrás, a meio da adolescência, sentiu uma mudanca no coraçao. A sua convicçao no meio da sua crónica boa disposicao impressiona-me. Passamos uma boa parte da viagem a conversar, Juan contando-me anedotas, corrigindo o meu espanhol, curioso por saber as semelhancas com o português, ensinando-me as expressoes típicas do "seu" espanhol e dos seus amigos. O autocarro mal ultrapassa os 40 quilómetros por hora, as gentes no corredor apertam-me contra o meu assento, mas mesmo assim mal dou pelo tempo passar. Chego a Metapán a meio da tarde, as costas cada vez mais doridas, o espírito cada vez mais solto. Nunca nas minhas viagens me senti tao perto de um povo, tao imerso naquilo que verdadeiramente faz um país.
De Metapán apanho um autocarro que em pouco mais de uma hora, e bem mais confortavelmente, me deixa em Santa Ana, a segunda maior cidade de El Salvador, rodeada de vulcoes e parques naturais. Cansado, cometo o exagero de ficar no Hotel Livingston, um dos dois únicos da cidade. Um quarto só para mim por 15 dólares, uma verdadeira extravagância por estes lados. É já noite quando chego às páginas do caderno em que agora escrevo. Passaram aproximadamente 12 horas desde que deixei Nueva Ocotepeque.
Para a Sofia C.
Chego a El Salvador a pé. Primeiro posto de controlo, um homem de sorriso e rosto abertos aproxima-se de mim com um molho de dólares na mao e pergunta-me se quero trocar lempiras. Quero, mas o homem recusa-se a trocar apenas o meu dinheiro. Conversamos sobre de onde venho, para onde vou. Um guarda aproxima-se e pede-me o passaporte. Comecamos os tres a conversar. Tinham-me dito que o melhor de El Salvador sao as pessoas, mas isto é quase ridículo. Andei cem metros, estas sao as primeiras pessoas com quem falo, mas a diferença é realmente impossível de negar. E é de notar que nas Honduras já havia experimentado uma hospitalidade fora do comum. A razao talvez esteja no facto de El Salvador estar ainda totalmente imune ao turismo. O homem troca-me o dinheiro e despede-se com um caloroso aperto de mao, o guarda dá-me permissao para avancar, mas nao me manda fazê-lo. Passo um lugar que mais parece terra de ninguém, onde apenas um longo pavilhao azul e branco subsiste. Do outro lado, há outra cancela. Os guardas olham-me mas ninguém me manda parar. Continuo.
Um rapaz numa moto-táxi leva-me até Citalá, uma pequena aldeia a um quilómetro de El Poy onde posso apanhar o autocarro para Metapán e seguir viagem. Faltam ainda mais de duas horas para essa partida, procuro um lugar para comer. Cruzo a praça meio deserta onde se ergue a igreja, um autêntico extra-terrestre de mochila às costas no meio de outro mundo. Há paredes e casas pintadas com letras e desenhos que lembram as lutas de outros tempos, a guerra civil que terminou em 1992 e que se estima ter matado mais de 75.000 pessoas. Reflicto que a maioria das pessoas à minha volta deve ter alguma recordaçao da guerra, que deve ser algo ainda bem presente na memória deste povo e que é isso mesmo que as pinturas murais nao deixam esquecer.
Chego a um pequeno restaurante totalmente vazio, mas com um aspecto familiar e arrumado num pátio interior cheio de sombras. Um velho usando um chapéu de vaqueiro vem à porta e pergunta-me o que procuro, o que preciso. Estende-me de imediato a mao e convida-me a entrar. Já estou a comer quando vem sentar-se comigo. Chama-se Santiago Pinto, 77 anos, a vida ganhou-a na "ganadería". Quer saber o que faço, onde vivo, qual é o idioma do meu país, se tenho noiva ou namorada, se caso em breve, quanto tempo tenho de férias, quanto ganho como professor, qual a moeda do meu país, se o governo do meu país me ajuda a mim ou aos meus alunos, porque viajo. Despede-se de mim com um "Que Diós lo bendiga" que é uma verdadeira bençao. Mando às favas a minha condiçao de ateu e respondo "Que Diós lo bendiga a usted también". Sabe-me bem dizê-lo.
Autocarro para Metapán. Outra vez um velho school bus. Falta mais de meia hora para que parta, mas Santiago diz-me para ir já. Quando lá chego percebo. Ao entrar já só existem meia-dúzia de lugares livres. Há sobretudo crianças e jovens, algumas mulheres. Sento-me mesmo a tempo, dez minutos depois o corredor comeca a ficar assustadoramente cheio. Faltam ainda vinte minutos para o autocarro partir e as pessoas continuam a entrar. Quando finalmente partimos, já todo o meu conceito de sardinha em lata se alterou para sempre. A viagem até Metapán durará tres horas e meia por entre estradas de montanha. Tres horas e meia e dezenas de pessoas de pé. Ninguém protesta.
Juan, sentado ao meu lado, informa-me da duraçao da viagem e diz-me com uma gargalhada "Que vamos fazer? Se sair e for a pé canso-me ao fim de um quilómetro!" Juan vai juntamente com doze amigos seus a um encontro de jovens evangelistas em Metapán. Pergunta-me se conheço a Bíblia e diz-me que para os evangélicos o estudo da Bíblia é essencial. Também me diz que cresceu católico, mas que há poucos anos atrás, a meio da adolescência, sentiu uma mudanca no coraçao. A sua convicçao no meio da sua crónica boa disposicao impressiona-me. Passamos uma boa parte da viagem a conversar, Juan contando-me anedotas, corrigindo o meu espanhol, curioso por saber as semelhancas com o português, ensinando-me as expressoes típicas do "seu" espanhol e dos seus amigos. O autocarro mal ultrapassa os 40 quilómetros por hora, as gentes no corredor apertam-me contra o meu assento, mas mesmo assim mal dou pelo tempo passar. Chego a Metapán a meio da tarde, as costas cada vez mais doridas, o espírito cada vez mais solto. Nunca nas minhas viagens me senti tao perto de um povo, tao imerso naquilo que verdadeiramente faz um país.
De Metapán apanho um autocarro que em pouco mais de uma hora, e bem mais confortavelmente, me deixa em Santa Ana, a segunda maior cidade de El Salvador, rodeada de vulcoes e parques naturais. Cansado, cometo o exagero de ficar no Hotel Livingston, um dos dois únicos da cidade. Um quarto só para mim por 15 dólares, uma verdadeira extravagância por estes lados. É já noite quando chego às páginas do caderno em que agora escrevo. Passaram aproximadamente 12 horas desde que deixei Nueva Ocotepeque.
Para a Sofia C.
Sem comentários:
Enviar um comentário