sábado, agosto 4

Viagem ao Centro das Américas 18



Deixei finalmente Copán para trás e parti rumo a El Salvador. A intençao inicial era passar a fronteira e parar em Metapán, uma pequena cidade nas montanhas. Todavia, cheguei a Nueva Ocotepeque, ainda do lado hondurenho, já perto das quatro da tarde, ou seja, muito depois do último autocarro que sai do lado de lá da fronteira. Resolvi sair e passar aí a noite. Sigo viagem amanha de manha.
Nao vi nem um estrangeiro em Nueva Ocotepeque. Ao escolher esta rota, ainda por cima apanhando os autocarros "colectivos" (velhos school bus norte-americanos), saí por completo das rotas turísticas habituais. Há desvantagens nisso, mas as vantagens sao evidentes. Desde logo, o facto de contactar muito mais de perto com a vida real das pessoas que aqui vivem. É exactamente isso que pretendo e é exactamente isso que estou a fazer. O mais que vejo sao trabalhadores rurais, ou vendedores de rua, ou gente que segue o seu caminho na luta do dia-a-dia.
Um rapaz novo, talvez vinte anos, entrou no autocarro pela porta traseira. Carregava consigo a mais estranha das bagagens. Amontoadas em redes e sacos, o rapaz trazia desenas de centenas de latas de refrigerantes, todas elas bem amassadas e agrupadas, formando um círculo perfeito. O rapaz atirou uma, duas, tres, quatro destas esferas de aluminio sujo e colorido e entrou, na mao a meia-dúzia de lempiras para pagar ao revisor, e seguiu até á cidade mais próxima.
Ao viajar assim, é impossível nao reflectir sobre o que é a vida deste povo, de que sao feitas as suas conquistas diárias. Conheci um homem no autocarro que me disse que havia vivido cinco anos nos Estados Unidos. Para muitos, a terra do Tio Sam é obviamente um El Dorado, algo que os tira desta rotina em que se luta sobretudo para conquistar o hoje. Nao posso deixar de me lembrar de todas as vezes em que ouço as pessoas do lugar de onde venho queixarem-se das suas vidas. Porque se apanha muito trânsito, porque nao se ganha o suficiente, porque a escola dos meus filhos abre demasiado cedo, porque saio do trabalho demasiado tarde, porque o Benfica perdeu, porque as coisas "neste país" nao funcionam como deviam, porque o chefe é um idiota... Tudo queixas legítimas, pois claro. Como se pode ganhar o suficiente quando um televisor LCD custa tao caro, ou como nao apanhar tanto transito logo agora que comprei o último modelo série B da Toyota? Sou professor e vivo em Lisboa. É esse o meu mundo, foi aí que cresci, algumas destas queixas tambem já terao sido minhas. Certo, mas que dirá o homem que viaja para um país onde nem a língua o reconhece, ou o rapaz de latas de refrigerantes às costas? Que queixas terao eles, quais serao as suas infelicidades?

Para a Susana R.

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