sexta-feira, maio 14

Diários da Florida 4


Miami South Beach II
Se a transfiguração do dia tivesse um nome talvez se chamasse Miami Beach. Com a madrugada vem o silêncio. O sol da manhã saúda uma cidade completamente diferente, uma cidade limpa e virada para a sua praia imensa. Fora do quarto estão os anos 40. Edifícios a fazerem lembrar filmes de gangsters, diners e táxis amarelos vistos por entre persianas suspeitas. O elevador do hotel Sherbrooke podia levar lá dentro a máfia cubana ou homens de negócios de colarinho branco, mas ao invés leva-nos a nós até à rua onde não resta um só vestígio da noite. Do outro lado do passeio, compram-se os bagels e os copos de papel cheios de latte que se bebem já na areia de frente para o mar. Mergulho nas ondas e fico a contemplar a cidade erguida entre as cento e uma barracas de nadadores salvadores e um céu azul ao fundo.
Volto ao hotel e à espera está Mitch e a sua cadelinha. O dono do hotel Sherbrooke é um tipo que anda de bicicleta com a sua amiga de quatro patas plantada no cesto da frente. Ontem à noite, quando aqui chegámos, cumprimentou-nos com um “welcome to the 1940s” e histórias de uma antiga namorada açoriana. Para pagar a conta, leva-nos até aos seus aposentos, um dos quartos do hotel com uma antiga escrivaninha de madeira a servir de recepção e uma jukebox apagada como os anos que já passaram por aqui. Arrumamos as coisas outra vez numa pressa de descoberta. Ao fundo das escadas, há mais hóspedes à espera de entrar. Têm todos cara de quem vai ficar no último hotel com vaga na cidade. Talvez não percebam que a ascensão e a decadência são a história própria de todas as coisas e que o Hotel Sherbrooke não é o glamour de Al Capone, mas é a recordação desse glamour e aí mesmo reside o seu encanto.
Já na rua, continua a claridade do dia mas acabou a calma da manhã. Voltou o rebuliço, mas agora é sensação plena das Américas. Afinal, isto é Miami e isto é a terceira maior cidade dos Estados Unidos. As ruas são um desfile de gente de todas as cores e feitios. Procuro um antigo café de que gostei muito quando aqui estive há três anos atrás. Não o consigo encontrar e entro numa loja de esquina para perguntar ao empregado se o conhece. Não conhece e manda-me falar com um outro homem de boina amarela e ar de Versace que suspeito ser o patrão. Diz-me que talvez seja na Lincoln Road, uma das principais ruas desta cidade traçada a régua e esquadro. Quando lhe pergunto como chego lá, responde-me com um aceno brusco da cabeça. “Please, don’t bother me anymore. Go away.” Viro costas a pensar que há definitivamente qualquer coisa de errado com este lugar, que há qualquer coisa de essencialmente humano que por aqui se perdeu.
Não encontro o café, mas encontro a Lincoln Road e com ela a recordação de também já ter aqui estado. Só que a rua agora é diferente. A juntar às mil e uma lojas sofisticadas, as ruas estão cheias de bancas onde cubanos, porto-riquenhos e alguns brasileiros vendem frutas e toda a espécie de adereços. Dirijo-me a uma delas e falo com a mulher por trás do avental gordo em espanhol. Ela percebe-me perfeitamente, mas responde-me em inglês, como se fosse ridículo estar para aqui a falar a língua de Castela, uma vez que, obviamente, não sou nem de Castela nem muito menos de Havana ou de San Juan. Fico a pensar no distante conceito de “normalidade” enquanto mordo a maçã gigante e vermelha que a mulher me deu a troco de duas quarters. A tarde vai quase a meio e é tempo de partir outra vez. Serpenteamos por entre prédios e pessoas que se confundem sem que eu saiba muito bem quais são os mais sensíveis. Demora mais uma hora de condução pela cidade até deixar finalmente para trás esta amálgama de mais de 10 milhões de habitantes, um Portugal de arranha-céus e gente. À nossa frente está o Alligator Alley, a estrada que nos levará pelo meio dos pântanos das Everglades até ao Golfo do México, onde vamos encontrar, espero, o outro lado da Florida.

segunda-feira, maio 3

Diários da Florida 3


Miami South Beach I

Se o desespero da noite tivesse um nome talvez se chamasse Miami Beach. Chegamos ao cair da noite, mas o que caem são os corpos e as vozes, os gritos e o movimento frenético de pessoas que parecem divertir-se. Há uma espécie de corrida perpétua pelo estado mais alucinado da alma, no meio do trânsito caótico, da música aos altos berros vinda dos automóveis que passam num desfile de vaidades. Tudo é aparente, ou pelo menos tudo me parece aparente. Os jovens e adolescentes deitados em cima dos capots dos carros, as raparigas de saias à cintura, bonecas de salto alto a reclamar que aqui não há lugar para infâncias, homens de fato escuro à porta de discotecas e clubes de ar ainda mais escuro, gente e mais gente que passa indiferente, uma babel de sentidos desconcentrada. Há uma tensão de barril de pólvora no ar, como se bastasse um grito, um movimento mais brusco, para que a guerra começasse sem aviso e levasse consigo estas existências que correm para tentar enganar o desespero de não se encontrarem. Miami South Beach à noite não é um lugar, é um buraco de luz no meio de centenas de escuridões.