domingo, maio 24

Lisboa abandona António

António era de Lisboa. António era Lisboa. Todos os dias, descia as escadas de madeira podre e desembocava na Rua da Madalena mesmo a tempo de ver nascer o dia. Àquela hora a hora era de mais uma madrugada, gaivotas e o chão molhado, Lisboa bocejando depois de mais uma noite mal dormida. António descia as escadas, o chapéu cinzento na mão enrugada e os pêlos brancos presos no queixo antes da navalha do Gomes, barbeiro do Borratém, lhes cortar a esperança de crescer. Como António, aqui nascido e criado, marinheiros e prostitutas e gente vinda de toda a parte e agora os ingleses de olhar aberto como se Lisboa existisse desde ontem. António não tem em si a esperança mas a modorra dos dias iguais, a certeza segura que encontra na calçada da Rua da Madalena e no chapéu cinzento que deixa cair sobre a cabeça lisa e desgrenhada.

António vai devagar. O passo leve até ao Martim Moniz, a espera, o café do Ruço que só abre às sete e meia. Uma carcaça e um galão.

(o médico diz que o leite é bom. é bom para os ossos, não importa as dores de barriga)

Depois, outra vez a praça, a manhã crescendo no olhar de António e Lisboa abraçando-o com o sol.

(como vai o velho amigo?)

Só que hoje Lisboa não está para o aturar. Tem em si o frenesim das grandes capitais, quer o sol mas também quer a lua e grita e diz que a manhã não passa, que o tempo não passa, que quer a noite e se a noite não chega jura que há-de matar o velho. O chapéu cinzento e a barba ainda por fazer, sempre igual e todos os dias Lisboa tem de o abraçar e todos os dias Lisboa tem de lhe lembrar que a vida é um tédio e que se não fosse Lisboa já o velho não seria nada.

(parece que se chama António, Lisboa lembra-se de o ver nascer num tempo em que ainda sentia carroças e cavalos correndo sobre si)

Lisboa tem em si a agitação de não saber o que lhe há-de suceder mas de quem sabe que algo lhe há-de suceder. Sente o coração estalar por baixo das águas e tem a impressão que ou desata a chorar e se inunda nas margens ou começa a rir e se deixa levar pela cacofonia dos ares. É isto que Lisboa sente antes de se abrir em golfadas que a fazem sentir-se por dentro, as entranhas respirando e o corpo crescendo e o corpo arfando, Lisboa chora e ri ao mesmo tempo, vê a gente correndo louca e o ruído que se não cala. Lisboa vai-se afundando nas águas, mas fica muda de espanto quando vê o velho.

De corpo quieto, o chapéu sobre a calçada, António impávido nas suas certezas, nos seus lugares de sempre, indiferente à Lisboa que treme e chora e ri antes de se afundar nas águas.

terça-feira, maio 19

Diários de uma moeda ao ar 6

Madrid


Em Madrid, Lisboa cai aos trambolhões em recordações de semelhança. Excepto a gente. Estas ruas tão familiares mas que respiram em golfadas de multidões e pressas e vidas que nunca param. A viagem podia acabar aqui, a vida podia nascer aqui, este lugar que é tão real e desejo quanto é quimera. E as ruas que têm de tudo, mendigos e homens de negócios, gente de trabalho e gente que vai ao acaso, mulheres que riem como se a vida fosse solta e homens com ar de quem procura um vento que se não pode encontrar. Numa esquina, lojas cheias de turistas e um homem sentado tocando copos que é paz travando o reboliço dos passos. Os dedos contornam os bordos húmidos e as notas enchem o ar que me enchem o peito. Madrid que passa, a cidade que me faz querer anular o tempo e o espaço. Se pudesse, levaria Madrid até Lisboa e de Lisboa faria a Madrid de todas as viagens. Assim, ao fim da tarde, enquanto um homem tocando copos enche o ar de música e as gentes passam à procura de um vento que se solta.

FIM


quarta-feira, maio 13

terça-feira, maio 12

Diários de uma moeda ao ar 4


De Salamanca, parto para Madrid. Madrid porque saudades de um tempo feito de noites infindáveis. A meio caminho, é tempo de conhecer paragens famosas, mas onde nunca estive. O El Escorial é um ponto obrigatório na estrada entre Salamanca e a capital de Espanha. Mais que o monumento, é o olhar no horizonte que me prende a imaginação. Por entre as árvores que se alongam na planície, podiam estar Quixote e Sancho, os dois discutindo a lealdade que não se mede pela força, a verdade que se encontra em cada um independente do giganteza do mundo. Quixote e Sancho a pé por entre as árvores, pisando a terra, duas personagens que desejaria pessoas de verdade, homens que me fizessem sorrir como velhos conhecidos aproximando-se no jeito de sempre. O olhar deambula e então Madrid outra vez. Ao fundo do céu, ergue-se o destino, a cidade anunciando-se em arranha-céus que fazem lembrar uma América qualquer perdida no meio dos séculos que não são seus. É para lá que sigo, comigo o Quixote que sempre me traz por dentro.


sábado, maio 2

Diários de uma moeda ao ar 3

Plaza Mayor, Salamanca

Instantâneos da janela da Pensión Robles









Diários de uma moeda ao ar 2


Chego a Salamanca ao final do dia. O carro estacionado e a mochila outra vez presa nas costas. Quando sinto o peso das alças sobre os ombros tenho a sensação de que voltei a casa. Caminho. Vou à procura de um lugar para ficar, uma cama onde passe a noite, mas qualquer lugar me serve para me procurar a mim mesmo. Por isso, tenho em Salamanca a exaltação das descobertas, apesar de já aqui ter estado dezenas de vezes. Contemplo a cidade no seu ritmo de sempre, a luz que não é castanha mas que se faz castanha sobre a cor de areia das pedras, as gentes que regressam como se a noite lhes trouxesse um recomeço. Vou caminhando por entre tudo isto até chegar às arcadas que anunciam a Plaza Mayor. Do outro lado está a História. Nunca me canso desta visão de assombro, um rectângulo perfeito cheio de gente que nos torna parte de um monumento.


A entrada da Pensión Robles é-me familiar. Subo a escadaria antiga, a madeira que range antes do bater da porta. Do outro lado está uma senhora gorda, gordíssima, que me pergunta ao que venho e de onde venho. Surpresa: a palavra Portugal dá-lhe um arrepio no olhar. “Es que a mí no me gusta los portugueses…” Ainda assim diz-me que sim, que arranja uma cama por esta noite. Fico. Gostei da sinceridade da mulher gordíssima. Não é todos os dias que alguém nos diz na cara que não gosta do nosso país. Decido antes virar a mesa, conquistar a mulher, mostrar-lhe que pode haver pelo menos um português que lhe mude a opinião. Enquanto preenche os papéis, conversamos. Sobre tudo, sobre nada, sobretudo conversamos e nessa conversa talvez que a mulher entenda que não somos as nossas nacionalidades, que agora somos duas pessoas conversando sobre tudo e sobre nada. Quando me entrega a chave, a voz está mais cordial e consigo pressentir-lhe um travo de simpatia. Talvez que a tenha conquistado, mas o certo é que ela me conquistou. A mulher gorda da Pensión Robles está-se nas tintas para o que os outros pensam.


Entro no quarto e descanso um pouco antes de sair de novo. Cá fora, Salamanca acorda para o despertar da noite. “Tapas” e “cañas” e gente pelas ruas e cafés e restaurantes cheios de vida. Não estou em casa, mas podia bem estar. Ocorre-me que uma cidade ou um lugar pode receber-nos como a mulher da Pensión Robles. Olhar-nos como forasteiros de quem se desconfia ainda que aceite que fiquemos. Depois podemos ser nós a escolher. Aprender a conquistar a cidade e nessa conquista descobrir o segredo para que nos sintamos em casa.