sábado, janeiro 31

A dádiva

Saio de casa para mais uma rotina. Subo a rua em direcção ao Pátio de Belém, o café de esplanada sobre o Tejo que visito pelo menos duas vezes por dia todos os dias. Vou tantas vezes que o Pátio de Belém para mim já não é Pátio de Belém, é antes o nome do seu patrono principal. O senhor Peixoto é homem de simpatias e de calorosas boas vindas. É homem de trabalho. Bata creme à cintura, a cabeça calva e os óculos pretos que lhe dão um ar de patrão. O senhor Peixoto é a porta e as paredes, é os quadros de Luanda espalhados na vista de quem passa e se senta nas mesas de tampo negro. Tanto que quando se lá vai, não se vai “lá”. Vai-se ao senhor Peixoto. Como se vai a casa de um amigo que conhecemos ontem como se conhecêssemos toda a vida.

Lá dentro, o cheiro a café, a bolos e a ar quente dão ao lugar uma ternura de décadas que ainda não possui. Do lado de fora, a esplanada derrama a vista sobre o encanto de Lisboa, os Jerónimos e a outra banda cercando o rio que passa de fininho na calma da tarde. Quando entro, não preciso de falar. O café em cima do balcão é mais rápido que os meus bons dias. Seja quem for junto à máquina, todos conhecem o meu hábito, a minha rotina, o meu gosto. Hoje é o senhor Peixoto – ele mesmo – quem faz as honras. Pergunta-me se estou bem disposto, respondo que sim num cliché qualquer, mas o senhor Peixoto não enseja a oportunidade de dois dedos de conversa. Depois do seu cafezinho ainda vai ficar melhor. E vai daí é claro, respondo, sem este café não passo eu.

O senhor Peixoto afiança que é o melhor do bairro, o melhor de Belém. Digo-lhe concerteza, o melhor de Belém e arredores. Responde-me se é dos arredores é de Lisboa, é do universo inteiro. Ora bem, já filosofamos e tudo. Brinque à vontade, café deste não encontra você por aí. Eu explico-lhe. Fique sabendo que cá o da casa é de qualidade, o mesmo lote mas variedades distintas. A máquina lava-se duas vezes por mês, mas o segredo está na moagem. Nem muito moído nem moído de menos. Porquê? Se muito, empapa, a água não passa, não faz espuma; se pouco, a água passa depressa demais, o café não ganha sabor. Ora veja por si mesmo – à minha frente, um pires com dois gramas de café que me convida a saborear com os dedos. Além disto, temos o lote, que tem arábico, tem robusto africano e tem do vulgar que nem interessa de onde é. Quer ver? Pois faça favor – outro pires, agora cheio de grãos negros de vários tamanhos. Está a ver estes maiores? São do arábico, isto é o que dá aroma e sabor. Estes aqui pequenos e grossos são do robusto africano, é o que lhe dá corpo, os outros aí mais pequenos, aqui para nós, é só para dar acidez e fazer número.

Saboreio a chávena enquanto o senhor Peixoto me explica tudo isto. Juro a mim mesmo que o café nunca mais me há-de saber igual.

Um homem de gabardina e cabelo grisalho toca o balcão ao meu lado. Vem de cachecol enrolado e um ar de quem também faz deste lugar um refúgio de rotinas. Pede um descafeinado. – Descafeinado? E já agora sabe como se faz um descafeinado? Não, senhor Peixoto, não sei, mas tenho a certeza que me há-de explicar. Lavam-se os grãos com vapor, só isso, não mais que isso. Se não sabia, fique sabendo que o descafeinado tem cafeína. Tem menos, mas não julgue que é com vapor que se tira a cafeína toda de um grão.

(como o homem, não importa quantas vezes a vida o lave por fora, ele há-de ser sempre o que é por dentro.)

A chávena chega ao fim. Estou rendido. Penso como pode alguém julgar que este ofício não tem ciência, como pode alguém ensinar-me tanto em tão pouco tempo e quem há-de avaliar a relevância de um conhecimento. Agradeço ao senhor Peixoto a lição. Saí de casa há vinte minutos, volto vinte minutos mais rico. O senhor Peixoto agradece com a frase de sempre. O prazer foi nosso, estamos juntos.

Pode crer que estamos, senhor Peixoto. Pode crer.

sexta-feira, janeiro 23

Porque é que o Verão não fica até que nós fiquemos?

Para chegar à praia, caminhos de terra, o carro aos saltos, depois a pé, depois descer por uma corda. E então o areal e as rochas que entrecortam o areal. A areia molhada tem o tamanho de um estádio, se a maré está cheia, o tamanho de uma agulha, se estiver vazia. É a praia que só é praia metade do dia ou metade da noite. Por dentro da areia está a minha casa. À volta tem-se o mar e tem-se o Alentejo. A areia revolve-se não com as ondas mas com os passos. Gritos e gargalhadas, as primas a discutir, os tios a explicarem, as tias a lerem romances, os sobrinhos a ver se percebem, os pais a dormirem, a avó na sombra do chapéu tricotando. É Verão e às vezes começamos todos a caminhar. Vamos junto à espuma fina que nos beija os pés, serpenteando rochas, falando do passado e do futuro.

(o biquini que lhe roça as coxas, escarlate como o meu rosto quando de mim se aproxima. É Verão, mas o frio que sinto na barriga enregela-me os movimentos. Os lábios têm o gosto do sal fresco e quando me encontram já eu me perdi. O coração não bate, é antes o corpo inteiro que se agita e se palpita como um fim eminente. A cor do sol é tudo quanto consigo ver e mesmo assim só de olhos fechados.)

Caminhamos. Nunca a direito, quase sempre detendo-nos perante uma ideia, uma respiração, um nada qualquer que nos lembre que o tempo por aqui não passa. O tempo revolvendo a areia debaixo da qual está a minha casa.

(de olhos fechados somos livres. Temo-nos a nós e ao que em nós se compõe, as coisas maiores que às vezes nem por palavras se explicam. A areia tem lá dentro as vozes que se juntam num cantar de coro e de força. A totalidade.)

(a cor do sol estala no corpo antes de cair sobre o mar. Apenas respiração, o ar exangue.)

O tempo não passa antes que o dia termine, antes que a avó se levante e recolha as malhas na alcova, antes do pai arrancar da areia a sombra que se espalha pelas nuvens. Mais gargalhadas e gritos de protesto. Porque não ficamos aqui até ao fim do Verão? Porque é que o Verão não fica até que nós fiquemos?

No céu, não se vêem os aviões, mas o seu rasto. Finas linhas brancas como a espuma das ondas. As linhas do destino e dos sonhos de lugares longínquos. Todas as viagens passam por cima do Alentejo.

segunda-feira, janeiro 19

Alentejo

Aqui há deserto,
aqui
vidas que se ocultam nas sombras,
Homens e Mulheres
são a história
esquecimentos alheios.

Aqui o deserto é ilusão,
espelho reflectindo
a água serena da vida
a água correndo nas almas
sem se importar
com olhos secos forasteiros.

segunda-feira, janeiro 12

À volta cá te espero

É curioso o universo. Num minuto está-se a tentar inverter a sua tendência e sua-se as estopinhas de frustração, no minuto seguinte pára-se de tentar e o universo vem ter connosco de braços abertos e sorriso largo. "Préstórias" fechou porque o seu autor estava fechado, imerso em objectivos e desejos e outras prisões que tais. O autor foi lá abaixo e voltou, baixou os braços e relembrou que a vida não se leva na luta mas na firmeza. Escrever aqui é um gosto. Não tem de ser mais que isso, não é mais que isso. Melhor ainda foi perceber que ler o que por aqui fica dito é também um gosto para muitos. A eles lhes peço desculpa pelo egoísmo das expectativas e lhes garanto que agora é para durar. Peço sobretudo desculpas ao autor. Por mais fechado que estivesse não se justifica a falta de respeito. "Préstórias" volta e deve ser para ficar.

p.s. não resisto: um obrigado especial à Virgínia, ao Lima, à Inês, ao Pedro, à Maria Ana. E ao Ricardo.