domingo, agosto 10

Diários do Médio Oriente 17

Portugal no problem

Muda a informação, muda a decisão. Na viagem entre Kayseri e Urfa, conheci Steve e Rut que estavam a caminho da Síria. Disseram-me que na sua viagem tinham conhecido uma americana que conseguira o visto na fronteira. Demorara cinco horas a passar, mas com sucesso. Penso se uma americana consegue passar na fronteira entre a Turquia e a Síria, eu também consigo. Estou em Urfa a sessenta quilómetros de Aksakale, a pequena vila que separa os dois países. Estúpido seria não tentar.
Ainda não são nove da manhã quando entro na pequena carrinha que demora quase duas horas a chegar a Aksakale. O motorista leva-me directamente até à fronteira e o que se percebe à primeira vista é um cenário desencorajador. Arame farpado e portões fechados, de resto terra seca até ao fim do horizonte. Alguns homens conversam num pátio repleto de sombras, abrigados deste sol avassalador. Chamam-me, mas quase não falam inglês. As únicas palavras que conseguimos trocar são os nomes de lugares, palavras soltas. "Portugal", "Síria", "visa". Um deles consegue fazer-me perceber que vai ligar aos guardas da fronteira. Entendo que são homens que trabalham aqui, trocando dinheiro e levando mercadorias e pessoas para o lado de lá. Passam três telefonemas até que me diz que sim, que vamos. Vamos não significa que passamos, claro, mas parece que vale a pena tentar. De carro, porque a pé é proibido.
Chego ao último posto fronteiriço turco e a primeira pergunta que o militar me faz é mesmo essa, onde está o meu visto para entrar na Síria, com um ar de quem se recusa a carimbar a minha saída da Turquia. Sorrio, digo "Portugal no embassy, Portugal no problem", chegam outros, trocam-se palavras em turco, em árabe, da luta sai o meu passaporte carimbado. Estou oficialmente fora da Turquia, falta a parte mais difícil.
Primeiro posto militar sírio. O soldado saúda-me com um sorriso aberto e um aperto de mão caloroso. "Portugal" diz, enquanto faz um compasso de espera e pensa onde raio ficará esse lugar. O sorriso abre-se ainda mais. "Cristiano Ronaldo!" declara exultante. Convida-me a sentar enquanto faz mais dois telefonemas e vai fazendo as perguntas da praxe: o que faço na Síria, para onde vou, qual a minha profissão. A conversa termina com mais um aperto de mão e a frase "Welcome to Syria". Recebo o primeiro sinal de encorajamento, mas nestas coisas, já se sabe, até ao lavar dos cestos é a vindima. Ainda vejo a fronteira lá ao fundo e pelo meio centenas de militares. Chego a um segundo posto e o homem que me saúda desta vez não é tão amistoso. Tem ar de quem não me vai deixar passar. Escreve num caderno em árabe tudo o que está no meu passaporte. Quer saber qual dos meus nomes é do meu pai e qual da minha mãe, percebe-se que isso é importante para ele. Revista incessantemente as páginas do passaporte, para trás e para frente. Calculo o que procura, um visto ou um carimbo de Israel. Como o meu passaporte tem carimbos de países que não conhece (mas quem aqui alguma vez terá ouvido falar do Belize?) demora-se no exame. Ok, diz-me enquanto me aponta um pavilhão pré-fabricado e me faz perceber que é ali que tenho de pagar o meu visto.
Quando chego perto do pavilhão, percebo que é silmultaneamente um ponto de câmbios. Só esquemas, como de costume. Porém, declara o bom senso e o instinto de viajante que se há coisas que não se devem discutir neste momento é dinheiro. Lá dentro estão três homens que me convidam a entrar e sentar-me. Curiosamente, começo a perceber algumas coisas do que dizem através do gestos que utilizam quando falam. Por exemplo, quando erguem a mão e a fecham rodando os dedos, respondo "Portugal" e sei que acertei a resposta pela sua reação. Como o padrão se repete deve querer dizer que esse gesto acompanha qualquer coisa como "de onde vens?" ou "de onde és?" A resposta deles é quase sempre a mesma: "Cristiano Ronaldo!". Ser da pátria do melhor jogador do mundo abre muitas portas.
Terceiro posto fronteiriço, mais militares, um deles claramente com ar de graduado. Note-se que ainda não tenho nenhum visto no meu passaporte. Dão-me papéis para preencher, o passaporte percorre mãos e mais mãos. Finalmente, um deles diz-me "Ok, buy stamps". Um rapaz aproxima-se e entrego-lhe 1100 libras sírias. Então acontece mesmo. O oficial cola-me os selos no passaporte e carimba-o. Diz-me que posso ficar na Síria 15 dias. Volto a entrar no carro que me tem acompanhado até aqui. Passo o último posto já sem problemas, com o visto carimbado. O carro entra dentro de uma pequena aldeia. Estou na Síria.
O que acontece depois é quase indescritível, a começar pela amabilidade das gentes. Um exemplo: quando estou já junto à carrinha que me há-de levar até Raqqa, a cidade mais próxima, vejo um dos guardas da fronteira chegar de mota. Vem junto a mim e entrega-me um dos papéis que eu havia preenchido e que ficara esquecido. Diz-me que preciso dele para sair da Síria. Este homem deu-se ao trabalho de me vir procurar para me entregar um papel cuja falta só traria problemas a mim.
A tarde vai-se aproximando do fim quando chego a Aleppo, a cidade mais importante do norte da Síria e onde vou ficar esta noite. Penso que vou ter de mudar outra vez o título desta viagem no blog. A partir deste momento, sinto que o Médio Oriente está à minha mercê, apenas à espera de ser descoberto.



Aleppo, ao cair da noite

1 comentário:

Anónimo disse...

Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
;-))