Da arbitrariedade da religião
É comum considerarmos que a religião é algo de pessoal, uma escolha de cada indivíduo que se relaciona com a sua crença, a sua fé, a sua ideia ou sentir pessoal acerca de um deus ou de deuses. Percorre-se o mundo e descobrimos que esse mesmo sentir individual encontra uma combinação muitas vezes simétrica com dezenas de milhares de outros indivíduos. A Turquia é, na sua grande maioria, um país muçulmano, acontecendo o mesmo com a Síria, a Jordânia, o Egipto e tantos outros, vizinhos ou não da mesma geografia. Já Portugal é normal considerar como país cristão católico, a Índia como hinduísta – para uma parte muito significativa da sua população –, o Tibete como núcleo do budismo, Israel como defensor do judaísmo, a Grã-Bretanha como advogada do cristianismo protestante, a Rússia como bastião central do cristianismo ortodoxo. Todas estas considerações estão tão correctas como o senso comum e a sua verdade ultrapassa quaisquer laicidades que possam prevalecer neste ou naquele estado. Assim, parece existir algo que diz respeito às religiões que ultrapassa a mais simples das fés ou a mais pura das crenças. A religião, surgindo assim tão claramente associada a este ou aquele estado, torna-se algo de geográfico, de político, de social, de cultural. Basta observar as realidades dos países acima referidos e encontraremos concerteza diferenças significativas nos modos de vida, nos relacionamentos entre pares e, sobretudo, nas línguas, sem prejuízo da globalização crescente da vida moderna.
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Posto isto, importa observar que antes de escolher uma religião, um dado indivíduo nasce em algum lugar e que esse lugar, mal ou bem, não é obviamente escolha sua. Também não depende de si a natureza religiosa ou cultural do lugar que o vê nascer. Não sou português porque o escolhi ser e ainda que posteriormente escolhesse não o ser não seria escolha minha ter-me sido dada a oportunidade de escolher. Em suma, a nacionalidade é arbitrária. Logo, também o é, mais uma vez (não me canso de o afirmar) na grande maioria dos casos, a matriz cultural e religiosa do individuo. Quando o imperador romano Constantino fez do cristianismo a religião oficial do império romano, esse facto viria a ter consequências para todos os que vivessem ou viessem a nascer no espaço desse império, mesmo depois desse império cessar a sua existência. Porventura, este facto histórico influencia mais a minha vida em matéria religiosa – e, logo, cultural e social – que propriamente as minhas escolhas individuais.
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Por tudo isto, parece-me ser a escolha de viver um ou mais deuses desta ou daquela maneira algo que comporta em si uma forte componente de arbitrariedade. Não a vivência de um deus ou deuses em si mesma, como uma coisa do domínio da fé e do espiritual, antes a vivência desse mesmo deus ou deuses integrada num certo quadro religioso. Quando alguém diz que professa a religião que deriva da palavra de Jesus Cristo e outro afirma a pés juntos que a última palavra é a do profeta Maomé, convém ter em atenção que provavelmente um nasceu num dado lugar e outro nasceu noutro lugar qualquer.
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Acresce a isto o facto de a religião ser também, e muito, matéria de transmissão entre gerações e culturas, de ser algo feito de rituais que passam de pais para filhos. Uma vez mais, também o facto de nascermos no seio deste ou daquele aglomerado de parentes é fruto do acaso. Ser português, ter nascido em Lisboa, ser oriundo de uma certa família alentejana, tudo são factores que contribuem decisivamente para a minha identidade, mas não é algo prévio à minha pessoa, algo que, digamos, já estivesse “lá” antes de eu nascer. Seguramente, não é o tipo de circunstância que em algum momento tenha sido alvo do meu livre arbítrio. O que depois se constitui em mim como divino ou não, como espiritual ou não, é algo de pessoal e não é matéria de discussão racional. O que de mim faço não é arbitrário, ainda que possa ser arbitrário o quadro que me rodeia. Perante isto, “tolerância” torna-se uma palavra quase tautológica e “diferença” e “responsabilidade” conceitos tão óbvios que quase esvaziariam de conteúdo o termo “julgamento”.
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