“Acasos” e partida
A manhã do segundo dia nasce mais harmoniosa, sem chuva e sem a confusão que Marrakech revelou na noite anterior. Abandono a pensão e as vielas que circundam a Djemaa el-Fna e procuro um sítio para tomar o pequeno-almoço. Problema: não consigo levantar dinheiro. Nem Visas, nem Mastercards, nem “electrons”. Nada. Preocupo-me? Nem por isso – já se sabe como é inútil tal coisa quando se está longe de casa com uma mochila de 10 quilos nas costas – mas é preciso resolver a questão, de outro modo arrisco-me seriamente a ficar “apeado” algures no meio das areias. Não posso partir para o deserto sem certezas quanto ao regresso e pouco mais de 1000 dirhams no bolso. Porém, a adversidade volta a mostrar a sua outra face, a face da oportunidade, a música do acaso que me embala o destino. Ao passar por mais uma máquina ATM, vejo três mulheres jovens que conversam. Não consigo ouvir ou perceber que dizem ou conversam, mas reparo que uma delas tem na mão um cartão de um banco português. Sem hesitar, aproximo-me e pergunto se estão com o mesmo problema que eu. Não estão. Só que, em terra de estranhos, a língua que nos viu nascer traz-nos sempre mais perto daqueles que com a mesma língua nasceram. Por isso, talvez por isso, sou convidado a juntar-me ao seu pequeno-almoço. Virginie e Manu são irmãs nascidas no Canadá e vividas no Porto. Sandra tem o Porto nascido em cada palavra que diz, aquele sotaque que a mim, estranhamente, sempre me soou tão belo de tão autêntico. Aceito o convite e uma vez mais, no simples gesto, no simples desvio daquilo a que alguns já se lembraram de chamar destino, fica o rumo de vidas determinado. A conversa corre ao sabor de pão com mel e café “noir” e a decisão não demora muito a ser tomada. O deserto há-de agora ver mais que um português no mesmo dia. Javier, Manu, Virginie e Sandra são assim oficialmente as quatro primeiras pessoas com quem me sentei a conversar desde que aqui cheguei, ainda não passaram 24 horas. Seguem todas comigo para o calor das dunas. São estas pessoas que comigo partem, companheiros não anunciados mas não menos bem-vindos. A confusão de Marrakech fica para trás, entregue ao fluxo das gentes que por ali se precipitam e vivem e morrem e que constroem uma cidade. O horizonte abre-se ao cenário glorioso das montanhas do Atlas, o derradeiro muro que me separa da imensidão.
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