quinta-feira, julho 30

Pediram-me que escrevesse sobre o Alentejo

Pediram-me que escrevesse sobre o Alentejo. Queriam que falasse dos montes ao fundo do horizonte que são ondas de mar ao princípio da terra. Que enchesse de tinta as planícies entrecortadas de fogo. Disseram-me que escrevesse sobre o Alentejo, que pusesse no papel a imagem do infinito onde uma só árvore habita o final da tarde. Loucos. Não entendem que o Alentejo é silêncio, não é palavra. É a música que toca baixinho na ausência da voz. O Alentejo, disseram-me. Pinta o calor sobre as páginas de um caderno, canta o vento solto, a quimera eterna de homens e mulheres no caminho para casa. E gritam e riem e pedem-me que escreva sobre o Alentejo porque querem sentir a força da terra feita na palavra. Loucos. Não entendem que o Alentejo é para se viver e para se morrer. O Alentejo não se escreve.

segunda-feira, julho 20

Consideração sobre o tempo em momento de decisão

O cabelo agarra-se-lhe ao pescoço no suor da espera. Nada tem senão a companhia dos objectos. A mala verde grande pousada como um corpo inerte, enrugada pelo peso que a traz ao chão. Sobre o tampo da mesa, o caderno de notas preto é antes uma tábua de palavras feitas de silêncios. O silêncio do telefone que ela ergue e volta a pousar num ápice de esperança.
(quem espera desespera, dizia o outro. e este idiota que não me diz nada. quem me dera ser o tempo e poder correr, ser eu no meu corpo a dona do tempo e fazer dele um movimento repentino.)
Nada. Estica as pernas por baixo da mesa e as pontas dos dedos lembram bailarinas em exercícios de equilíbrio. As pontas dos dedos que se agitam na desesperança da espera que não encontra o fim ao tempo. E nada. Suspira uma e outra vez, os dedos pousados nos lábios que procuram o dia em que alguém os beije.
(beijou-me uma vez e jurou-me que agora nunca mais. nunca mais a ausência e a incerteza de não ver repetido o beijo. este idiota que não me telefona, que não se lembra que estou aqui ao fim do mundo, à espera de o ver chegar.)
Suspira e então, no assopro dos pulmões, vem-lhe outra vez a vontade de ser mulher. Chega a mão à mala e arranca-a do chão. A cadeira bate com um sopro. O telefone fechado no silêncio, adivinhando o grito que o há-de trazer de volta a casa.
(não espero mais, não espero mais. onde está a vida? sou o tempo, não espero mais. corro na vontade que é minha. quero lá saber do silêncio. o tempo sou eu.)
Hesita. Detém-se um instante, a ver o que a pudesse ter esquecido, a ver se esqueceu o que nunca mais pode lembrar. Nada. A porta abre-se com um estrondo. É o tempo.

sexta-feira, julho 17

O Cheiro

Havia sempre qualquer coisa ao lume. A cozinha era branca e não tinha tecto. As paredes eram as escadas que subiam até ao terraço onde estava o sol, o mar e o fogo de artifício nas noites de Agosto. O cheiro era a minha avó de avental cinzento inclinada sob o fogão minúsculo que ardia sem fumo.

A praia durava todo o dia e quando voltava já a noite se debatia com o céu cada vez menos azul. Chegava a casa de lábios roxos e o corpo frio das ondas tardias. Só havia um chuveiro e era impensável chegar à mesa coberto de sal e de cheiro do sal. Então havia que esperar que o irmão mais velho sacudisse do corpo os restos de mar.

(ele primeiro, sempre primeiro. os irmãos mais novos não sabem passar à frente.)

O corpo mais frio sentava-se no meio das vozes da cozinha, as conversas dos adultos e a confusão de ser feliz só porque sim. As vozes e o cheiro quente que vinha dos tachos e do lume e das mãos da minha avó era o calor que aliviava a espera.

quarta-feira, julho 8

Feridas

Não sei de acontecimento algum que seja uma ferida. Na vida, já se sabe, o primeiro que se lhe conhece é a morte. O final de um beijo, o soltar de um abraço, um amor para sempre que parte, um velho avô que prende a respiração na eternidade. Há as casas, os lugares. Há sobretudo as pessoas, os outros como nós que também partem e que também nos deixam e soltam com o fim de um abraço. Só que na vida não sei de nada que seja ferida. Antes alegria, antes tristeza. O sofrimento e o encontro com a serenidade.
A vida é cornucópia de Deus, tem tudo lá dentro multiplicado por cem milhões. E há as feridas. Mas as feridas são a vida e não sei de vida alguma que não tenha Deus. Então tudo é porque tem de ser. Como uma viagem. Um instante mínimo em que por um segundo se perde um barco, um autocarro, um comboio que nos havia de levar para um qualquer lugar. Às vezes ficamos, às vezes vamos. Às vezes morremos porque há vezes em que renascemos e vivemos. Mas tudo é viagem, tudo é caminho certo e exacto que temos mesmo de percorrer. As feridas são o tempo que nos leva a aceitar esse segundo em que tudo muda para sempre.