sábado, julho 31

Viagem na minha terra 6


6. A minha terra no seu melhor
Vila Nova de Foz Côa, Portugal

Viagem na minha terra 5


5. Rio de Ouro
O comboio vai cheio. Não há um único lugar à janela. Li algures que esta é uma das mais míticas viagens de comboio do mundo. Entre centenas de turistas, há gente a caminho da sua terra ou talvez em visita a familiares distantes. O Douro não está só do lado de fora das janelas. Vai aqui dentro, sentado por entre máquinas fotográficas e de filmar. As conversas misturam a Língua Portuguesa com as de outras paragens. Famílias de emigrantes, em que os pais falam a língua de Camões e as crianças misturam gramáticas francófonas. Muitos dos pais são casais ainda jovens, o que me faz pensar que esta história ainda não acabou no imaginário de uma mala de cartão.
O comboio demora quase duas horas a chegar à Régua. Vê-se o Douro, mas ainda não se vê o Douro todo. Mas parece que alguém se esqueceu de avisar os passageiros. Diria que mais de setenta por cento dos passageiros sai. O comboio avança para o interior e não passam mais que duas estações até o Douro descobrir todo o seu esplendor. Agora há mais lugares vazios e é possível ver a paisagem das janelas abertas. Por vezes, há barcos que acenam do rio. Do comboio, os passageiros respondem. É como se soubéssemos todos o que partilhamos, como se a paisagem nos tornasse cúmplices de um milagre.
Na estação de Pinhão, sai a outra metade dos passageiros. Nesta carruagem, não somos mais de seis. Ainda falta para chegar ao Pocinho, a estação terminal já não muito longe da fronteira. Em tempos a linha corria montanhas e planícies até Salamanca, ligando o Porto ao resto da Europa e Portugal à revolução industrial. Mas essa é uma realidade do passado. A do presente é este deslumbre que se avista por entre o vento. É impossível não pensar que a minha terra é absolutamente espectacular, mas ao mesmo tempo perguntar como pode um recurso destes não estar mais aproveitado.
A chegada ao Pocinho acontece ao princípio da tarde. O calor morde a pele sem misericórdias. É o fim da linha e o cenário é quase vazio. O Pocinho é uma rua que sobe para uma estrada que passa. Há dois restaurantes e mais nada. Não importa. A paisagem atrás de mim é suficiente para encher uma vida.

sexta-feira, julho 30

Viagem na minha terra 4


4. Às portas do Douro
Estação de São Bento, Porto, dez horas da manhã. A menina da bilheteira não percebe o que eu digo. Tenho a certeza que não estou noutro país, que esta viagem não me levou além-fronteiras e que a minha terra é um país pequeno onde todos falamos a mesma língua. Pois. Pergunto se posso apanhar ligação na Régua para Vila Real, deste modo fazendo a linha ao longo do Rio Corgo. Aqui tudo bem, diz-me que não, que para Vila Real só autocarro, mas da CP. Então pergunto pela linha do Tua, se está a funcionar ou não. De Vila Real para Tua, não, responde-me. Sim, isso eu sei, pergunto se em Tua posso apanhar a mítica linha. Ah, responde, isso não, está fechada. Ok, então se for primeiro até à Régua e depois seguir para Pocinho, é possível. É o mesmo comboio, responde. Claro que é o mesmo comboio, pergunto é se há mais comboios para o Pocinho depois deste. Ah, há, isso há. Então posso ir até Pocinho e regressar no mesmo dia à Régua. Olhar de silêncio contemplativo para a folha de horários. Aponta. Faz dois círculos onde está a hora do comboio de regresso ao Porto. Não, não é isso, digo, é a hora de regresso do Pocinho. Para o Pocinho, já lhe disse, tem mais três comboios hoje. Respiro fundo. Quero saber a hora de regresso do Pocinho, não a hora de partida para o Pocinho. Ah (outra vez). Vira o horário ao contrário e indica-me a hora. Já percebi que o melhor será as perguntas ficarem por aqui. Dê-me um bilhete até ao Pocinho no próximo comboio. A menina sorri e entrega-me o bilhete. Eu fico a pensar como deve soar o meu sotaque por estas paragens enquanto me delicio com a estação centenária. 
 
 

quarta-feira, julho 28

Viagem na minha terra 3


3. Porto sem fim
Caminho ao longo da Rua de Santa Catarina como um transeunte que conhece a sua cidade. Na esplanada do Majestic, turistas e empregados de laço, o Porto menos Porto. À esquina da Rua Formosa, é fim de tarde e uma mulher toca violino. O ar toca música que só pode ser de paixão, esta cidade feita de corações sérios. As línguas falam palavras que se confundem com a música e fazem sempre sorrir. Nisto, as gentes respiram a cidade como se as ruas fossem veias. Entre o Bolhão e a Rua da Firmeza, um casal envergonhado conversa com uma mulher mais velha. “Olhe, digo-lhe já menina, tem aqui um rapaz muito bem educado, muito sério…” A rua passa por mim sem se deter, mas consigo perceber que falam de casamento, de escolhas para a vida e para a morte. O Porto ama a brincar paixões que se fazem sérias.
Viro a direcção e desço a Rua Sá da Bandeira até ao largo do Rivoli. A tarde vai-se fazendo noite, mas as pedras onde me sento escaldam como o dia que passou. Uma mulher jovem de saia azul desce umas escadas a meu lado saltitando como uma criança. Olha para mim de frente e desvia o rosto com um sorriso de vergonha, como se tivesse partilhado a alegria com um estranho. Tento disfarçar-lhe o embaraço e fixo o olhar do outro lado da praça. Em frente ao teatro, dois rapazes fumam e riem alto. O calor da pedra torna-se insuportável e volto a levantar-me. Sigo pela Rua Magalhães Lemos até aos Aliados. A avenida das vitórias e das celebrações está cheia de música. Junto à câmara municipal, uma esplanada derrama cerveja sobre o calor dos que nela se sentam. Desço junto ao café Guarany, mas a esplanada pouco tem de Porto, outra vez inundada por estrangeiros de ar feliz. Cá em baixo, a tarde acaba de vez na Praça da Liberdade.
Volto ao Hotel Peninsular à procura de descanso antes de subir até aos Clérigos para refrescar a garganta. A noite avança e com ela vem então o Porto da juventude, dos corações menos sérios, das paixões de circunstância e do movimento constante. Vou buscar mais uma cerveja ao Piolho e sento-me definitivamente na Praça dos Leões. Há adolescentes correndo de skate e patins em linha e crianças soltando gargalhadas que se confundem com as campainhas das bicicletas. Encostados às portas da reitoria, uma rapariga toca guitarra enquanto os amigos cantam e conversam. Quando a rapariga pára de tocar, um dos rapazes do skate aproxima-se dela e pede-lhe a guitarra emprestada. O rapaz senta-se no chão com a viola e todos os outros param à sua volta. Pouco depois estão todos a cantar um refrão que termina com “sabes que gosto de ti” mas que não consigo identificar a origem. Não importa. Volto ao Piolho uma e outra vez, a ver se arrefeço a noite em copos de plástico a transbordarem de espuma. De novo na Praça dos Leões, sento-me no chão até que chegue o cansaço. Mas o Porto não acaba nunca. É cidade de paixões e amores sérios.

terça-feira, julho 27

Viagem na minha terra 2


2. O princípio da minha terra
O dia nasce quente. É manhã ainda e a temperatura do ar já ultrapassou os trinta graus. A estação de comboios de Paço D’Arcos é o ponto de partida onde me abrigo na sombra. Faltam quinze minutos. Vou até ao café para passar o tempo e os senhores da TV falam do possível dia mais quente do ano na capital. Parece que a coisa vai chegar para lá dos quarenta graus. Rumar a norte talvez seja então a melhor das ideias, penso, ainda que logo a seguir se fale do fogo. Parece que a minha terra está a arder. Vale que logo de seguida, as notícias dão conta do sucesso do Sporting em terras de Tio Sam, ao mesmo tempo que o Benfica segue a sua brilhante preparação. A viagem ainda não começou, mas a minha terra já é a minha terra igual a si mesma. 
Subo de novo até à gare. Faltam menos de cinco minutos para a viagem começar de vez. Ao meu lado, uma rapariga de vestido preto e ar nervoso acende o meu primeiro cigarro do dia. O fumo desprende-se-lhe dos lábios e impregna o ar quase parado enquanto contempla o vazio ao fim da linha. O comboio acaba por aparecer e a rapariga atira o cigarro meio queimado para o chão. A mochila sobe-me para as costas e entro à procura de um lugar junto à janela. Quero ver o mar. A viagem é curta mas preenchida por uma disputa de corações. Três lugares atrás de mim, uma mulher desabafa com a amiga sobre o seu homem que, aparentemente, se vai caindo de amores por uma terceira mulher. Entre desabafos e alguns palavrões, a mulher transpira a sua frustração sem pudor para os restantes passageiros. Mas sempre vai dizendo que “ela não há-de ser mais forte que eu!”. O amor segue a sua luta.
Vinte minutos depois, a estação do Cais do Sodré é um derrame de passageiros sobre a gare, deixando o comboio vazio. O ambiente não engana. Lisboa é uma cidade de viajantes, dezenas de centenas de turistas e gente procurando o seu destino. Esta é a viagem na minha terra, por isso sou apenas mais um deles, ainda que esta seja a minha cidade. Caminho pela gare até chegar à paragem do autocarro. Faltam oito minutos para o 28 passar e meia-hora para o comboio em Santa Apolónia. Faço contas e concluo que chegarei bem a tempo de caminhar devagar. Acerto e pouco mais de dez minutos depois, “desembarco” em frente ao Tejo, pronto a iniciar então a viagem que me há-de levar na minha terra para longe da minha terra.
Dentro do comboio, Portugal começa. Um comboio Lisboa-Porto é um desfile exemplar da alma lusitana. Há jovens de ar sofisticado, senhoras de ar fino e senhoras de ar afogueado, homens de camisa aos quadrados lendo os desportivos do dia e raparigas com ar de estudantes regressando a casa, todos em contraste quase directo com os habituais (muitos) turistas e viajantes de ocasião. À passagem pelo Pombal, decido esticar as pernas e vou até uma das portas. O revisor já lá está, ocupando o seu lugar de vigilância. Dá o sinal que autoriza o comboio a partir de novo, mas logo de seguida algo lhe chama a atenção. Na porta seguinte, passa-se qualquer coisa que não consigo perceber. Furioso, o revisor grita “Ó amigo, saia para dentro!”. O comboio segue a sua marcha, mas, como não consegui ver o que se passou, fico a pensar no que quis ele dizer com aquilo. Não sei se a ordem foi para o “amigo” entrar se foi para sair do comboio. Ocorre-me uma terceira possibilidade, a do dito “amigo” estar a usar uma saia que, talvez provocadoramente, esteja fora do comboio ou de outra coisa qualquer. Seja como for, as vicissitudes da Língua Portuguesa não param de me surpreender.
O comboio chega ao Porto ao princípio da tarde e o calor sobre a gare de Campanhã desengana-me expectativas de um ar mais fresco. Espero vinte minutos pelo terceiro comboio desta viagem, aquele que me há-de levar à estação de São Bento, até ao centro da Invicta. À minha frente, vai sentado um homem que lê fervorosamente um pequeno livro de bolso forrado numa capa azul que me parece ser uma versão miniatura do Novo Testamento. O homem não levanta os olhos das páginas que têm um ar gasto e comido pelo tempo, como se tivesse sido exactamente este o exemplar que viajou de geração em geração até chegar ao presente. Ao meu lado, senta-se uma mulher jovem de calções e com umas pernas capazes de parar um ateu ou converter o trânsito. Mas o homem nada. É um exemplo de devoção e atenção, não desviando o olhar por um segundo sequer, nem mesmo quando o comboio chega finalmente a São Bento e a rapariga se levanta bem à sua frente. Fico a pensar que esta é uma das cenas mais religiosas que vi ultimamente, incluindo as pernas da rapariga. Só que o pensamento desaparece num ápice, no meio do movimento inexorável da estação que me engole de novo, centenas de passos no seu destino que é também o meu.

Viagem na minha terra 1


1. Breve nota antes do primeiro passo

A viagem na minha terra começa para norte. Porque para sul é sempre um regresso a casa. E a viagem, se é viagem, tem de começar para longe. Mesmo que a terra seja minha e esta seja talvez a viagem que me levará a percorrer a distância mais curta de sempre. Não será necessário cruzar sequer uma fronteira, a não ser as naturais, aquelas que fazem as cidades e os rios e as montanhas. Apesar do título, não vou à procura do Portugal de Garrett, antes do Portugal que é meu, a minha terra que conheço mas que não conheci como as outras. Nunca viajei por Portugal de mochila às costas, ao sabor do acaso de sempre, dependendo de transportes públicos e infrastruturas locais. Claro que já viajei de carro, de autocarro, de comboio, de barco e até de bicicleta. Mas nunca ao sabor dos dias, como se tivesse acabado de aterrar na Portela vindo de uma paragem qualquer. É esse Portugal que quero conhecer. Tenho apenas uma semana para o fazer e sou forçado a escolher um destino, a cortar o país ao meio e a deixar uma parte para outras viagens na minha terra. Escolho então o norte. Talvez porque o norte seja o início da minha terra, o lugar por onde tudo começou, talvez porque seja a região que conheço menos, talvez então porque as viagens têm de começar para longe do regresso. Ainda assim, como sempre, não sei o que esta viagem poderá trazer. Sigo para norte, mas poderei acabar no sul. A cada dia pertence apenas uma decisão e a de hoje é esta: apanhar um comboio para norte.  

sexta-feira, julho 23

Diários da Florida 12

O dia começa a chegar ao fim e com ele a viagem. Reentramos em Miami e o céu cobre-se de nuvens. É como se até o Verão fizesse a sua despedida. A baixa de Miami torna-se agora uma mistura de águas, uma sanduíche de betão entre oceano e firmamento. Penso que, como a vida,  todas as viagens têm um fim. Mas como a vida, as viagens que se vivem deixam o peito cheio do que por lá encontramos.


FIM

quinta-feira, julho 22

Diários da Florida 11


Deixamos Everglades City para trás e partimos rumo ao interior dos pântanos. A viagem começa a aproximar-se do fim, mas antes há ainda tempo para nos perdermos. A velha e lendária US41, também conhecida por Tamiami Trail, leva-nos até Monroe Station, um lugar que não é mais que três armazéns à beira de um trilho de terra batida. Daqui para a frente são muitos os avisos e até uma placa que assinala a última oportunidade de voltar para trás. Não voltamos, e pouco depois descubro que a natureza bruta das Everglades vale qualquer risco.