domingo, junho 28

Cruzamento

O homem simpático passava pela mesma rua da mulher violenta. Saíam os dois à mesma hora de casa, os dois subindo o mesmo passeio em direcção ao mesmo edifício. Que dia lindo, pensava o homem; vida de merda, murmurava a mulher.

O homem simpático não usava óculos nem tinha um ar cândido, mas era assim dado a modos de franzino. A mulher usava óculos por cima da pele seca e do rosto branco, olhos azuis e redondos.

O homem, por ser franzino e por ser simpático, seguia cumprimentando toda a gente, floristas e lojistas por igual, gente que o conhecia pelo sorriso. Bom dia, dona Lena, então essas rosas, dona Letícia.

A mulher, por ser seca e por não ser simpática, olhava os decotes da Dona Lena e da Dona Letícia e pensava grandes lambisgóias, não devem é ter em casa homem que vos dê assistência.

Subiam ambos a rua e se fosse o caso de chover, o homem abria o seu guarda-chuva e dizia de si para si que tristeza não poder hoje cumprimentar as gentes, ao menos que todos estejam recolhidos, bem merece abrigo este povo tão prestável. Já a mulher, chovendo, chovia ainda mais, as lágrimas quase nos olhos da raiva que sentia por o dia não ajudar.

(que nojeira de passeio, se apanho o sacana que poliu as pedras da calçada juro que lhe dou cabo das ventas)

Um dia, o homem simpático cruzou-se com a mulher violenta à porta do mesmo edifício onde trabalhavam. Ele cumprimentou-a com um ligeiro aceno e de sorriso feito. Ela mandou-o à fava, mas sem dizer. O homem foi até aos elevadores, entrou num deles e carregou no botão. 15, o último piso, residência da administração. A mulher foi até à porta ao lado das escadas e tirou lá de dentro o balde e a esfregona. O homem entrou no gabinete, sentou-se na cadeira de pele e olhou a cidade que lhe pertencia. A mulher pegou na garrafa da lixívia e verteu-a para o balde. Sentiu o cheiro acre do químico e lembrou-lhe o cheiro do hospital, os longos corredores que todos os dias percorria até à cama 21. Chorou um pouco mais, à pressa para não dar parte de fraca, mundo tão estranho.

(que filho este, Deus quem te daria o condão dos meus pecados?)

Lá em cima, quase quase no céu, o homem reclinou um pouco mais o cadeirão e sorveu devagar o café amargo mas que não sabia a lixívia. O travo seco da cafeína trouxe-lhe à memória a tarde em que conhecera a mulher dos seus sonhos, a mulher de sempre que o aguardava ao fim do dia. sorriu de si para si e nunca mais se lembrou da mulher violenta que ainda agora limpava o chão que ele tão simpaticamente pisara.

sexta-feira, junho 19

Instantâneo de uma qualquer história de amor

A camisa fina cola-se-lhe ao corpo e Manuel tem vontade de a rasgar. O calor aperta, sente-se na pele por entre o suor seco que o incomoda como se fosse cócegas que a camisa lhe faz. Cheira a pó e a vento e a vacas, esta camisa que Manuel vestiu faz hoje sete dias. Sete dias a caminhar por estas planícies de deserto, sete dias sem encontrar uma voz, apenas o mugir das vacas que o seguem e perseguem.

Manuel cruza o alpendre da casa e quando entra sente a frescura e o cheiro do picante que lhe aviva os sentidos. Escuta a voz da mulher e adivinha o sabor da carne e do tomate e do feijão, aquele sabor que só a mulher lhe traz, o calor que arde até ao céu da boca, até ao azul por cima do mundo. Manuel sorri e seu sorriso é antes gargalhada. O gosto do regresso e a frescura da casa quase o fazem esquecer a camisa que agora rasga finalmente. Finalmente a pele, o sabor quente que é mais da mulher que do tempo.

(sete dias sem encontrar uma voz)

Lucia corre a beijá-lo, abraça-o com a força do desejo e o que Manuel sente é antes o gosto das amoras que se lhe cola aos lábios. Manuel inebriado à procura do equilíbrio, mas a terra girando ao som da voz da mulher.

(porquê o tempo, meu amor, porquê os dias todos nesta camisa)

Manuel sabe do bâton, as amoras doces e a voz saboreada por todos os que como ele cruzam e cruzaram o alpendre e a frescura da casa. Manuel sufoca entre as pernas de Lucia enquanto o vestido e a camisa lhe fazem crer que são antes as vacas que cheiram a feijão e que o vento e o pó têm o aroma de perfume, de amoras, de carne.

(caio em ti, meu amor, a água branca colada na pele)

Manuel e Lucia seguem confusos, mas sabem que as mãos não os enganam, que a pele que tocam é a mesma que tantas vezes se incendiou na frescura da casa, os dois cegos pelo desejo e pelas gargalhadas que se perdem por entre o vento e o pó.

Espaço


O espaço é vazio, mas tem cor. O espaço tem a cor da liberdade, a cor de podermos correr ao sabor da música de nós mesmos. Saltamos para o vazio e somos outra vez crianças, longe dos quotidianos que outros fabricaram por nós. O espaço é vazio, mas tem lá dentro a cor do mundo para que o possamos percorrer a pé.