sábado, abril 28

Diários do Deserto 13

Silêncio

Não são mitos, nem lendas, nem devaneios de poetas, as coisas que se dizem sobre o silêncio do deserto. É enorme e imenso e esmagador. A tal ponto é o silêncio que as vozes e a música, quando o interrompem, ganham a forma de corpos estranhos, forasteiros que parecem lutar contra o gigante adormecido, adamastor que sempre os vence pela sua simples existência .

quarta-feira, abril 25

Diários do Deserto 12


Mergulho

A estrada perde-se no horizonte. Horizonte de montanhas, as margens de um lago há muito falecido. A toda a volta, a imensidão é seca e árida e a perder de vista. Além do alcatrão estreito, de uma ou outra vegetação ou árvore abandonada à sua solidão, tudo não passa de rocha e pedra e pó e areia. Penso que África deve ser isto, deve ser isto África, esta planície que entra pelo mundo adentro. Avançamos e as horas que passam pelo meu corpo tornam-no cada vez mais flexível, cada vez mais em uníssono com a ordem natural das coisas. Nada me perturba, nem os solavancos, nem as conversas dos meus companheiros de estrada. A cada novo minuto, a cada nova hora sinto-me cada vez mais tranquilo em mim. Tudo me parece possível e nada me importa.

O alcatrão termina e agora é a vez definitiva da terra, o solo de areia e pedra mesmo por baixo dos nossos pés. Às vezes temos de parar, às vezes é o jipe que não avança, imerso no peso da terra que o puxa para si. Um pouco mais adiante, surgem as primeiras dunas e os primeiros acampamentos. Lentamente, serpenteamos os vales minúsculos que separam estas montanhas de brincar. Consigo pressentir a areia deslizando por baixo dos pneus e ocorre-me a ideia de um estranho veludo. Do outro lado destas dunas, voltam as rochas e as pedras, a areia passa a acompanhar-nos apenas no horizonte. O calor aperta e os caminhos tornam-se cada vez mais difíceis. O ar é seco a ponto de nos secar o corpo. O pó dos trilhos e a ausência de humidade vai-me gretando os lábios enquanto a pele se vai encarquilhando em torno das unhas, na ponta dos dedos, nos braços, na cara, por todo o lado. De quando em vez, o jipe fica atolado e consigo ouvir, senão pressentir, alguns suspiros de preocupação vindos dos meus companheiros de viagem. A ideia está bem presente. E se parássemos aqui, e se fosse aqui que tivéssemos de aguardar pela divina providência alheia? Ganha contorno e presença definitiva este vazio que nos rodeia. Estamos no meio de um nada algures no planeta Terra. Arrisco-me a pensar e a sentir outra vez que não importa, que nada me poderia agora suceder que me arrancasse desta harmonia. Passam quilómetros e mais quilómetros, outras gentes e caravanas e camelos e oásis de palmeiras. A tarde chega ao seu meio e o calor começa a diminuir, mesmo a tempo de nos ver chegar ao acampamento, ainda sãos e ainda salvos. Homens de turbantes escuros e roupas largas correm ao nosso encontro. À frente do olhar nada mais subiste agora senão um oceano inteiro de areia e dunas, o imaginário a perder de vista, o sonho tantas vezes sonhado.

Saio do acampamento e deixo os meus companheiros de viagem para trás, deixo a mochila, deixo o jipe e toda a caravana, deixo o mundo entregue à sua ordem e ao seu caos. Avanço sozinho. Subo a primeira duna, desço e continuo a avançar. Caminho até me parecer que é antes o céu que me pesa sobre o corpo. Mais uma duna e depois outra. Paro finalmente no cimo de um destes gigantes de pedras estilhaçadas pelo vento. Não está aqui mais ninguém, não há mais ninguém que aqui esteja. Eu só e mesmo de mim próprio me chego a esquecer. O cenário à minha frente é tão imenso que me atira em silêncio definitivo. Deito-me de frente para o sol e para o mar do deserto, o corpo entregue ao todo que o recebe. Fecho os olhos. Adormeço. O universo inteiro sossega na paz pura de ser.

Diários do Deserto 11

Ready, Set, Go!


Posted by Picasa

Diários do Deserto 10


Às portas do deserto

As montanhas do Atlas. Não cabem em palavras, por isso, por ora, limitar-me-ei a dizer que as atravessei. Os picos de neve e os vales de verde profundo. Passando, chegámos a Aït Benhaddou, um espécie de porto de abrigo na estrada entre Marrakech e o Sahara. É uma pequena vila rodeada por uma paisagem vasta e árida de montes rochosos, mas com alguns pontos de verde que lhe dão quase um aspecto de oásis. Sendo património mundial da UNESCO, é sobretudo famosa por ter sido, e ainda ser, palco e cenário de muitos filmes, uns mais “hollywoodescos” que outros, alguns mais famosos, outros menos. Lawrence da Arábia, Jóia do Nilo e Gladiador são alguns desses filmes, mas a mim pareceu-me mais natural o facto de aqui terem sido filmados Jesus da Nazaré e A Última Tentação de Cristo. De facto, não seria necessário grande esforço de imaginação para darmos connosco na bíblica Galileia. Pena é que a espiritualidade se esgotasse por aqui, dado o volume de turistas e comerciantes.

O crepúsculo não vinha longe quando deixámos Aït Benhaddou para trás e tomámos a estrada para Zagora, cada vez mais para Este, cada vez mais para Sul. Passámos por Ouarzazate e os seus monumentais estúdios cinematográficos. Caiu a noite e era já noite cerrada quando chegámos finalmente a Zagora, aquele que será o nosso derradeiro ponto de partida para o mar de rochas e areia. Será também onde abandonaremos momentaneamente o nosso veículo, pois daqui em diante os trilhos e caminhos não se compadecem com a fragilidade própria dos citadinos. Zagora, segundo diz o famoso sinal na saída leste da cidade, fica a 52 dias de camelo de Tombouctou, no Mali, esse lugar que ganhou fama de quase inalcançável. O sinal pode ser recente, tal como a cidade, mas a sua presença indica claramente que estamos em terras do Sahara. Assim mesmo o indica o vento que sopra, a cor da terra, os palmeirais que se avistam no sopé dos montes que nos rodeiam. Sinto-me aqui, aqui e agora, completo. Mas por enquanto o tempo que nos resta é utilizado para as habituais negociações e concessões de quem viaja em grupo. Entrementes, conhecemos Tahar, que há-de ser o nosso guia até às dunas de Erg Chigaga, não muito distantes da fronteira com a Argélia. Fica então estabelecido que haveremos de partir na manhã do dia seguinte, em rumo definitivo ao imaginário que aqui nos trouxe.

domingo, abril 22

Diários do Deserto 9

Coisas que não cabem em palavras

Aït Benhaddou

Diários do Deserto 8

Reflexão sobre o tempo e os caminhos

Nas estradas que atravessam o Atlas, vi vários homens e crianças que, à passagem de automóveis e jipes repletos de estrangeiros, mostravam pedras coloridas na esperança do sempre fértil negócio das memórias e recordações. Creio que seriam cristais vulcânicos ou algo do género, mas o que mais me fascinou foi antes a questão de saber como seria que estes homens e crianças passariam o seu tempo, como seria para eles a perspectiva da vida. É que estavam todos, ou quase todos, sozinhos, meio abandonados nas estradas que serpenteiam vales e montanhas. Sozinhos, sentados nas bermas à sombra de alguma árvore ou pedra, e levantando-se e esticando-se sobre o alcatrão a cada passagem de uma qualquer viatura. Que caminho teriam percorrido até ali? Que pensamentos lhes haviam de ocorrer na passagem das horas? E as horas, chegariam lentas, vagarosas como o movimento da natureza, ou antes indiferentes como os turistas que passam de automóvel e jipe e olham para os cristais em vez de contemplarem os rostos daqueles que os vendem?

quinta-feira, abril 19

Diários do Deserto 7

Coisas que não cabem em palavras

Atlas


Posted by Picasa

Diários do Deserto 6

“Acasos” e partida

A manhã do segundo dia nasce mais harmoniosa, sem chuva e sem a confusão que Marrakech revelou na noite anterior. Abandono a pensão e as vielas que circundam a Djemaa el-Fna e procuro um sítio para tomar o pequeno-almoço. Problema: não consigo levantar dinheiro. Nem Visas, nem Mastercards, nem “electrons”. Nada. Preocupo-me? Nem por isso – já se sabe como é inútil tal coisa quando se está longe de casa com uma mochila de 10 quilos nas costas – mas é preciso resolver a questão, de outro modo arrisco-me seriamente a ficar “apeado” algures no meio das areias. Não posso partir para o deserto sem certezas quanto ao regresso e pouco mais de 1000 dirhams no bolso. Porém, a adversidade volta a mostrar a sua outra face, a face da oportunidade, a música do acaso que me embala o destino. Ao passar por mais uma máquina ATM, vejo três mulheres jovens que conversam. Não consigo ouvir ou perceber que dizem ou conversam, mas reparo que uma delas tem na mão um cartão de um banco português. Sem hesitar, aproximo-me e pergunto se estão com o mesmo problema que eu. Não estão. Só que, em terra de estranhos, a língua que nos viu nascer traz-nos sempre mais perto daqueles que com a mesma língua nasceram. Por isso, talvez por isso, sou convidado a juntar-me ao seu pequeno-almoço. Virginie e Manu são irmãs nascidas no Canadá e vividas no Porto. Sandra tem o Porto nascido em cada palavra que diz, aquele sotaque que a mim, estranhamente, sempre me soou tão belo de tão autêntico. Aceito o convite e uma vez mais, no simples gesto, no simples desvio daquilo a que alguns já se lembraram de chamar destino, fica o rumo de vidas determinado. A conversa corre ao sabor de pão com mel e café “noir” e a decisão não demora muito a ser tomada. O deserto há-de agora ver mais que um português no mesmo dia. Javier, Manu, Virginie e Sandra são assim oficialmente as quatro primeiras pessoas com quem me sentei a conversar desde que aqui cheguei, ainda não passaram 24 horas. Seguem todas comigo para o calor das dunas. São estas pessoas que comigo partem, companheiros não anunciados mas não menos bem-vindos. A confusão de Marrakech fica para trás, entregue ao fluxo das gentes que por ali se precipitam e vivem e morrem e que constroem uma cidade. O horizonte abre-se ao cenário glorioso das montanhas do Atlas, o derradeiro muro que me separa da imensidão.

domingo, abril 15

Diários do Deserto 5

O início da aventura

Por entre a confusão das ruas de Marrakech, caminho lentamente ao acaso. Há vendilhões e turistas, gentes que passam apressadas, umas para parte alguma, outras para parte incerta. Chove. No entanto, não passa muito tempo até que a chuva se detenha e o sol surja esparso por entre um arco-íris que atravessa os céus da cidade. É uma visão de idílio entrecortada pelo caos dos motores e das vozes e dos gritos que enchem todo o espaço ao redor. Caminho ao acaso e penso no que fazer, como farei para chegar até esse lugar que aqui me trouxe, como hei-de de fazer para tomar o rumo dessa desconhecida fronteira que é o deserto. Estranhamente, porém, parece-me que aguardo. Nada decido, a nada me comprometo. Deleito-me na tranquilidade que me tomou todos os sentidos desde que aqui cheguei, permanecendo imerso na velocidade do universo mas sem o contrariar ou apressar, antes deixando-me arrastar pelo tempo certo dos elementos.

Caminho um pouco mais e por entre encantadores de serpentes imaginárias e carrinhos coloridos que vendem sumo de laranja, desemboco uma vez mais na praça Djemaa el-Fna, esse lugar que, mais que o centro de uma cidade, parece ser o centro de milhares e milhares de vidas que por aqui se cruzam. Decidido a contemplar o movimento, procuro uma esplanada onde possa beber o primeiro café em terras de África. Sento-me e deixo o corpo encostar-se de encontro à madeira escura da cadeira que me assenta como um colo. Não passam mais de dois, três minutos até que sinta um toque no ombro e uma voz que se me dirige em tom afável. A voz, primeiro em espanhol e depois num inglês quase macarrónico, vem de um homem grande e de rosto macio. Tem uns olhos redondos e escuros, tão expressivos que penso não poderem pertencer a um homem vulgar. O sorriso e a beleza ainda assim não escondem a marca de um sofrimento que se adivinha mas que é ainda cedo demais para entender. Está sozinho e é sozinho que viaja, a primeira pessoa com quem falo desde que cheguei a Marrocos e a Marrakech e a África. Diz “Javier” e estende a mão para que troquemos as apresentações. A sua primeira frase, todavia, não é nem feita de nomes nem de quaisquer convenções. É uma frase que me faz sorrir e entender o porquê de haver tanto sentido no acaso e qual afinal a razão nada racional de sentir tanta tranquilidade desde que aqui cheguei. “Estou à procura de alguém para ir ao deserto,” diz-me como se soubesse, como se tivesse estado aqui sempre à minha espera, como se nada mais houvesse na sua vida além desta missão de aqui estar à espreita do meu destino. Sorrio tanto de surpresa como de certeza. A roda do universo terá iniciado o seu inexorável movimento. A aventura está prestes a começar.

Diários do Deserto 4

Coisas que não cabem em palavras

Marrakech


Posted by Picasa

quinta-feira, abril 12

Diários do Deserto 3

Viagem a solo

Ao chegar, é inevitável deparar-me com a solidão em que me encontro por ora. Viajo sozinho, estou só. Primeiro que tudo há o silêncio. O silêncio em mim, o silêncio de tudo existir à minha volta sem que uma palavra me cruze os lábios. Os sons ao redor percebem-se mais, são mais intensos e presentes porque não há som em mim. Mas não é só na cacofonia dos elementos que é perceptível a ausência de companhia. O mesmo se passa com as cores e com os cheiros. Tudo o que me cerca cerca-me mais, faz-me sentir mais como a parte de um todo. Depois há a calma de caminhar, de percorrer os lugares ao ritmo único de mim mesmo. Penso e sinto e percebo que também assim deveria ser na vida, ter o tempo todo e ser em mim apenas o que sou. O tempo. O tempo para olhar, o tempo para sentir, o tempo para escrever sobre o que sucede e assim cimentar a certeza do que se viveu, o tempo a que se perde a conta de tão devagar que passa.

Volto ao silêncio. Dele resulta a ausência de julgamento, a não verbalização de quaisquer juízos de valor. É esse silêncio que me faz receber em cheio o mundo, com a força de ser meramente aquilo que é. Fernando Pessoa escreveu um dia, no meio dos seus desassossegos, Que me pode dar a China que a minha alma não me tenha já dado? E, se a minha alma mo não pode dar, como mo dará a China, se é com a minha alma que verei a China, se a vir? Poderei ir buscar riqueza ao Oriente, mas não riqueza de alma, porque a riqueza da minha alma sou eu, e eu onde estou, sem Oriente ou com ele. Viajar a solo é a junção de duas dádivas, daquilo que nos é dado pela “China”, pela Índia ou por Marrocos e daquilo que a nós mesmos nos damos por estarmos tão perto de nós.

terça-feira, abril 10

Diários do Deserto 2

Primeiras impressões – Casablanca, manhã do dia 1 de Abril

Não percebo nada do que as pessoas conversam à minha volta.

Domingo talvez seja um bom dia para chegar a Casablanca. Tudo calmo e não há sobrelotação de pessoas em parte alguma.

Sinto-me espantosamente tranquilo.

Os comboios são muito confortáveis, mas sobretudo lembram-me os da minha infância na Linha de Sintra.

Já não me lembrava de como o meu francês pode ser tão mau.

Casablanca parece ser um amontoado de casas velhas e prédios sujos, mas é certo que só vi a cidade da janela do comboio.

Os homens vestem uma espécie de camisa de noite grossa e com um capuz que me dá a impressão de ser muito confortável e prático.

Estamos em terra muçulmana, logo, já se sabe, mulheres de cabeça tapada e afins. Todavia é curioso ver que há muitos homens que carregam os filhos ao colo e que são eles que mais parecem interagir com as crianças.

Está frio, por isso, para já, lá se foi o mito do calor em África…

Sinto que venho visitar antepassados. As linhas nos rostos, a pele, os olhos, sendo diferentes dos meus, transmitem-me uma vaga sensação de familiaridade que não consigo bem entender ou classificar.

A primeira fotografia que não tirei mas gostava de ter tirado: um bairro degradado, tipo shanty town, casas rasteiras e chão enlameado, lixo encostado aos muros. Por cima de tudo isto, centenas de antenas parabólicas todas viradas na mesma direcção, a Este.