quarta-feira, abril 25

Diários do Deserto 12


Mergulho

A estrada perde-se no horizonte. Horizonte de montanhas, as margens de um lago há muito falecido. A toda a volta, a imensidão é seca e árida e a perder de vista. Além do alcatrão estreito, de uma ou outra vegetação ou árvore abandonada à sua solidão, tudo não passa de rocha e pedra e pó e areia. Penso que África deve ser isto, deve ser isto África, esta planície que entra pelo mundo adentro. Avançamos e as horas que passam pelo meu corpo tornam-no cada vez mais flexível, cada vez mais em uníssono com a ordem natural das coisas. Nada me perturba, nem os solavancos, nem as conversas dos meus companheiros de estrada. A cada novo minuto, a cada nova hora sinto-me cada vez mais tranquilo em mim. Tudo me parece possível e nada me importa.

O alcatrão termina e agora é a vez definitiva da terra, o solo de areia e pedra mesmo por baixo dos nossos pés. Às vezes temos de parar, às vezes é o jipe que não avança, imerso no peso da terra que o puxa para si. Um pouco mais adiante, surgem as primeiras dunas e os primeiros acampamentos. Lentamente, serpenteamos os vales minúsculos que separam estas montanhas de brincar. Consigo pressentir a areia deslizando por baixo dos pneus e ocorre-me a ideia de um estranho veludo. Do outro lado destas dunas, voltam as rochas e as pedras, a areia passa a acompanhar-nos apenas no horizonte. O calor aperta e os caminhos tornam-se cada vez mais difíceis. O ar é seco a ponto de nos secar o corpo. O pó dos trilhos e a ausência de humidade vai-me gretando os lábios enquanto a pele se vai encarquilhando em torno das unhas, na ponta dos dedos, nos braços, na cara, por todo o lado. De quando em vez, o jipe fica atolado e consigo ouvir, senão pressentir, alguns suspiros de preocupação vindos dos meus companheiros de viagem. A ideia está bem presente. E se parássemos aqui, e se fosse aqui que tivéssemos de aguardar pela divina providência alheia? Ganha contorno e presença definitiva este vazio que nos rodeia. Estamos no meio de um nada algures no planeta Terra. Arrisco-me a pensar e a sentir outra vez que não importa, que nada me poderia agora suceder que me arrancasse desta harmonia. Passam quilómetros e mais quilómetros, outras gentes e caravanas e camelos e oásis de palmeiras. A tarde chega ao seu meio e o calor começa a diminuir, mesmo a tempo de nos ver chegar ao acampamento, ainda sãos e ainda salvos. Homens de turbantes escuros e roupas largas correm ao nosso encontro. À frente do olhar nada mais subiste agora senão um oceano inteiro de areia e dunas, o imaginário a perder de vista, o sonho tantas vezes sonhado.

Saio do acampamento e deixo os meus companheiros de viagem para trás, deixo a mochila, deixo o jipe e toda a caravana, deixo o mundo entregue à sua ordem e ao seu caos. Avanço sozinho. Subo a primeira duna, desço e continuo a avançar. Caminho até me parecer que é antes o céu que me pesa sobre o corpo. Mais uma duna e depois outra. Paro finalmente no cimo de um destes gigantes de pedras estilhaçadas pelo vento. Não está aqui mais ninguém, não há mais ninguém que aqui esteja. Eu só e mesmo de mim próprio me chego a esquecer. O cenário à minha frente é tão imenso que me atira em silêncio definitivo. Deito-me de frente para o sol e para o mar do deserto, o corpo entregue ao todo que o recebe. Fecho os olhos. Adormeço. O universo inteiro sossega na paz pura de ser.

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