terça-feira, agosto 11

Capítulo Terceiro

Eugénia discute com o marido. Discutem todos os dias, mesmo antes de fazerem amor. Todos os dias os gritos e impropérios, as promessas de se desamarem para sempre. E depois o suor, o gosto do peito e a certeza de que ainda não é desta que a vida se acaba. Não se lembram se foram sempre assim, nem se recordam de algum dia terem sido diferentes. Ela, de avental e depois da praça e do peixe; ele, de camisa aberta até ao umbigo e calças enroladas por cima dos joelhos, a boca que cheira a rede e a lodo. E todos os dias, Eugénia esperando o marido, António Manuel Charrinho, Tó Fateixa para os companheiros de mar alto.

(certa vez, dizem, certa vez ficou de pé preso na fateixa e foi ao fundo com o ferro em plena tempestade na barra. Esteve oito minutos debaixo de água antes de voltar à superfície, o corpo quase exangue e o peito respirando a custo. Ninguém, nem o Tó Fateixa, sabe como foi que se soltou da morte. Dizem que foi um anjo.)

Só que hoje Eugénia não foi para a praça. Está farta de enganos. Casou fez anteontem vinte anos. Dezanove anos, portanto, tinha Eugénia quando se deixou prender de amores por um homem seis anos mais velho, a pele então como hoje feita em rugas pelo sol e pelo sal da maré vaza. Eugénia contra a vontade do pai e das irmãs e hoje a pensar porquê. Hoje pensa que há-de vingar-se.

(a brasileira, a galdéria de perna feita a ver se fila os homens junto às redes do cais, mesmo à saída das traineiras que voltam da faina.)

Eugénia aqui. Tó Fateixa subindo a rua, a casa quieta em prenúncio de desgraça. Sentem os dois o cheiro do mar que se agarra ao vento da manhã. Eugénia aqui. Sabe que o coração já não é só seu. Não é só seu o corpo que vem subindo a rua, o cambalear ligeiro do vinho que se mistura com o gosto das redes e do lodo. À espera, junto à porta de ferro e vidro grosso, Eugénia encostada na porta capaz de esconder segredos. Porta aberta aguardando a chegada da vingança.

Eugénia ouve-lhe os passos, primeiro, depois a respiração e o cheiro do perfume barato escondido pelo suor do mar. Tó Fateixa encosta a mão na parede da casa e sente-a quente, o branco da cal lembrando o dia passado longe da terra. Vê a porta e pára antes do primeiro passo. Estranha a porta assim, escancarada madrugada adentro, um convite à maldade dos homens.

(onde está a mulher? Mulher, onde estás?)

Mas a casa quieta, um sossego de silêncio preso nas redes e no lodo. Tó Fateixa é homem de mar, conhece a calma antes da tempestade, este silêncio que lhe aguça os sentidos. Só que Tó Fateixa não quer acreditar. Esta é a sua casa, o seu lugar, a mulher que é também sua, a dona do coração sem corpo. Vai devagar, mas quando dá o passo que o traz dentro da casa

(a sua casa. Lembra-se da noite primeira, o casamento e o cheiro de Eugénia a redes e conchas e nesse instante talvez Tó tenha dito de si para si talvez seja isto o amor.)

quando dá o passo que o traz dentro da casa é tarde demais. A porta já não tem segredos, corre para ele com um estrondo. O vidro e o ferro invadem-lhe a pele numa desilusão de sentidos. Tó Fateixa ainda vai a tempo de escutar a gargalhada de Eugénia que chora.

(filha da puta, que me matas!)

Lá fora é madrugada ainda e é ainda o silêncio. Mas Eugénia só coração.

terça-feira, agosto 4

Retrato de um coração

Ontem choveu. E porque ontem choveu, vejo daqui o campo transpirando verde. O vapor na lonjura é o hálito da madrugada, o campo que canta alvoradas de silêncio.

Vejo daqui o campo e vejo que ontem choveu porque não chove já. Ao fundo, na linha do céu, o campo fita-me na quietude dos moinhos sem vento. Está tão sossegado o ar que se Quixote aqui estivesse não teria com quem lutar. Só o verde do campo me anuncia as lágrimas escorridas das nuvens. Olho este verde e lembro que outrora esta terra foi minha, que aqui encontrei o amor, que neste lugar foi que para sempre esqueci o medo. Que foi este o lugar do incêndio, o lugar do fogo que apagou o verde. Não este, mas outro, feito de ventos saltando por cima das árvores, feito de gritos caídos do céu sem lágrimas.

Só que esse tempo passou. E agora apenas este verde calmo e ao centro do verde o vermelho que se vê de noite, um ribeiro que nunca se confunde com o céu. É o meu sangue. Ficou do coração que um dia morreu sobre este campo. Depois do medo para sempre esquecido, depois do verde para sempre apagado pelo fogo.

Olho o campo e do fundo do campo vem a voz. Vem o grito que faz nascer o sol. É a voz da mulher que passa e grita que é louca e diz que importa que ontem tenha chovido. Chega perto da janela e o vestido amarelo colado nas coxas desperta o desejo de me ver enfim sem o fogo que apagou o verde. A voz tem o cabelo agarrado à face pela água que ontem escorreu como lágrima. E grita e volta a gritar que importa que tenha chovido, que importa o fogo, para que quer o universo saber do rio de sangue correndo onde outrora havia um coração. A voz ri alto e ri à gargalhada e da janela vejo o sol inchar como se prendesse a respiração. A mulher cola-me a face às coxas e o cheiro do sexo levanta o vapor da madrugada. O verde perde-se no amarelo vivo que vem do sol e se despenha no vestido da mulher. A voz. O incêndio. A chuva. Que importa todo este silêncio?

(o meu coração onde está? não o encontro nas coxas da mulher e o rio correndo vermelho ainda por cima do verde apagado pelo fogo.)

(o coração que morra, deixá-lo morrer!)

A voz grita, grita o vestido e o sol a inchar, a inchar e já não consigo ver o campo, apenas o cheiro do sexo saltando por cima das árvores, sem o coração para sempre morto na torreira do sol. O sol que explode e inunda a janela de chamas. Outra vez o fogo. A voz rindo, gritando alto até se extinguir no silêncio, o verde que há-de voltar a nascer e há-de voltar a morrer. E o campo a procurar o coração, sem saber que se perdeu por entre os gritos.