terça-feira, julho 27

Viagem na minha terra 2


2. O princípio da minha terra
O dia nasce quente. É manhã ainda e a temperatura do ar já ultrapassou os trinta graus. A estação de comboios de Paço D’Arcos é o ponto de partida onde me abrigo na sombra. Faltam quinze minutos. Vou até ao café para passar o tempo e os senhores da TV falam do possível dia mais quente do ano na capital. Parece que a coisa vai chegar para lá dos quarenta graus. Rumar a norte talvez seja então a melhor das ideias, penso, ainda que logo a seguir se fale do fogo. Parece que a minha terra está a arder. Vale que logo de seguida, as notícias dão conta do sucesso do Sporting em terras de Tio Sam, ao mesmo tempo que o Benfica segue a sua brilhante preparação. A viagem ainda não começou, mas a minha terra já é a minha terra igual a si mesma. 
Subo de novo até à gare. Faltam menos de cinco minutos para a viagem começar de vez. Ao meu lado, uma rapariga de vestido preto e ar nervoso acende o meu primeiro cigarro do dia. O fumo desprende-se-lhe dos lábios e impregna o ar quase parado enquanto contempla o vazio ao fim da linha. O comboio acaba por aparecer e a rapariga atira o cigarro meio queimado para o chão. A mochila sobe-me para as costas e entro à procura de um lugar junto à janela. Quero ver o mar. A viagem é curta mas preenchida por uma disputa de corações. Três lugares atrás de mim, uma mulher desabafa com a amiga sobre o seu homem que, aparentemente, se vai caindo de amores por uma terceira mulher. Entre desabafos e alguns palavrões, a mulher transpira a sua frustração sem pudor para os restantes passageiros. Mas sempre vai dizendo que “ela não há-de ser mais forte que eu!”. O amor segue a sua luta.
Vinte minutos depois, a estação do Cais do Sodré é um derrame de passageiros sobre a gare, deixando o comboio vazio. O ambiente não engana. Lisboa é uma cidade de viajantes, dezenas de centenas de turistas e gente procurando o seu destino. Esta é a viagem na minha terra, por isso sou apenas mais um deles, ainda que esta seja a minha cidade. Caminho pela gare até chegar à paragem do autocarro. Faltam oito minutos para o 28 passar e meia-hora para o comboio em Santa Apolónia. Faço contas e concluo que chegarei bem a tempo de caminhar devagar. Acerto e pouco mais de dez minutos depois, “desembarco” em frente ao Tejo, pronto a iniciar então a viagem que me há-de levar na minha terra para longe da minha terra.
Dentro do comboio, Portugal começa. Um comboio Lisboa-Porto é um desfile exemplar da alma lusitana. Há jovens de ar sofisticado, senhoras de ar fino e senhoras de ar afogueado, homens de camisa aos quadrados lendo os desportivos do dia e raparigas com ar de estudantes regressando a casa, todos em contraste quase directo com os habituais (muitos) turistas e viajantes de ocasião. À passagem pelo Pombal, decido esticar as pernas e vou até uma das portas. O revisor já lá está, ocupando o seu lugar de vigilância. Dá o sinal que autoriza o comboio a partir de novo, mas logo de seguida algo lhe chama a atenção. Na porta seguinte, passa-se qualquer coisa que não consigo perceber. Furioso, o revisor grita “Ó amigo, saia para dentro!”. O comboio segue a sua marcha, mas, como não consegui ver o que se passou, fico a pensar no que quis ele dizer com aquilo. Não sei se a ordem foi para o “amigo” entrar se foi para sair do comboio. Ocorre-me uma terceira possibilidade, a do dito “amigo” estar a usar uma saia que, talvez provocadoramente, esteja fora do comboio ou de outra coisa qualquer. Seja como for, as vicissitudes da Língua Portuguesa não param de me surpreender.
O comboio chega ao Porto ao princípio da tarde e o calor sobre a gare de Campanhã desengana-me expectativas de um ar mais fresco. Espero vinte minutos pelo terceiro comboio desta viagem, aquele que me há-de levar à estação de São Bento, até ao centro da Invicta. À minha frente, vai sentado um homem que lê fervorosamente um pequeno livro de bolso forrado numa capa azul que me parece ser uma versão miniatura do Novo Testamento. O homem não levanta os olhos das páginas que têm um ar gasto e comido pelo tempo, como se tivesse sido exactamente este o exemplar que viajou de geração em geração até chegar ao presente. Ao meu lado, senta-se uma mulher jovem de calções e com umas pernas capazes de parar um ateu ou converter o trânsito. Mas o homem nada. É um exemplo de devoção e atenção, não desviando o olhar por um segundo sequer, nem mesmo quando o comboio chega finalmente a São Bento e a rapariga se levanta bem à sua frente. Fico a pensar que esta é uma das cenas mais religiosas que vi ultimamente, incluindo as pernas da rapariga. Só que o pensamento desaparece num ápice, no meio do movimento inexorável da estação que me engole de novo, centenas de passos no seu destino que é também o meu.

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