terça-feira, julho 31

Viagem ao Centro das Américas 14



Gosto de viajar devagar. Gosto de ficar por algum tempo numa qualquer cidade ou vila de província. Estou em Copan Ruinas há apenas tres dias, mas o segredo está em criar rapidamente pequenos rituais, hábitos que deem uma sensaçao de que as coisas perduram no tempo. Em Copan, gosto de descer a mesma rua todos os dias, de entrar no mesmo lugar todas as manhas e de comer aí o mesmo pequeno-almoço. Gosto de reconhecer os rostos á minha volta, os mesmos hoje que foram ontem.
Desço a Avenida Mirador e páro à porta do Comedor y Pupuseria Mary. Entro e sento-me na mesa que por acaso é a número 1 e que fica debaixo de uma das ventoinhas no tecto. A sala é um pouco escura e há no ar um estranho cheiro a fumo que se entranha na roupa. Nao há mais nenhum turista porque este lugar nao é central e tem um aspecto simples, um lugar que só praticamente as gentes daqui frequentam. A meio da sala, uma outra porta abre para uma esplanada improvisada com chapéus de sol e mesas de madeira que liga novamente com a rua através de um portao de ferro igual ao de uma garagem. O rádio está sempre sintonizado numa estaçao qualquer local. Música hondurenha, suponho, enche o ar até ser interrompida por publicidade que anuncia os melhores "licuados y jugos naturales" das redondezas. Se é de manha, peço os meus cornflakes com banana. Já sei o que a empregada vai perguntar a seguir. "La leche fria o caliente?" Podia dizer logo quando faço o meu pedido, mas gosto de a ouvir dizer aquela frase com o seu sorriso atencioso. Digo "fria" e o tempo de espera depende do número de clientes que estao presentes. Seja qual for o tempo, acabam por chegar aqueles que sao, sem exagero, os melhores cornflakes que alguma vez comi. O leite é gelado e espesso e o sabor a banana é simplesmente delicioso. De seguida, "un café negro" arruma-me o estomago durante as próximas horas. Vou até ao balcao e na mao levo já as 32 lempiras que entrego à rapariga de camisola cinzenta e avental branco, o cabelo amarrado à volta do seu rosto de índia. Nao peço a conta, pago a conta e nesse gesto há também o reconhecimento de um hábito. A rapariga despede-se com um sorriso e gosto de pensar que aquele sorriso é um "até breve", que também ela reconhece que voltarei. Volto. É hora do almoço. Desço a Avenida Mirador e páro no Comedor y Pupuseria Mary. Entro e sento-me na mesa que por acaso é a número 1 e que fica debaixo de uma das ventoinhas no tecto. A sala é um pouco escura e há no ar um estranho cheiro a fumo...
para a Conceiçao

2 comentários:

Anónimo disse...

…ganhar a cumplicidade dos lugares, reconhecer a melancolia de outros tempos, são para aqueles que procuram o esconderijo da alma.

carla duarte disse...

:-) É... temos esta necessidade de nos sentirmos em casa, mesmo a milhares de kilómetros de distância. Somos ainda animais de hábitos, hábitos que nos lembram que estamos vivos e seguros, e que estamos visíveis aos outros.

Temos a nítida sensação que se não criarmos hábitos e os repetirmos, ficaremos de certa forma "invisíveis" aos outros, e até a nós próprios.
A rotina, de que tanto nos queixamos, é a que nos dá a maior sansação de estarmos vivos, o segredo, é que sempre estivemos, e sempre estaremos.

(Venho de longe e é para lá que vou...) a Amiga Carla.
Ps Gosto sempre do que escreves, pedro. Beijinhos