domingo, setembro 3

Poesia Toda


O poeta, assombrado pelo ser e pelas noites onde encontra impossível o descanso, escreve ao correr dos anos as palavras que o definirão. Vai pelas páginas como quem atravessa campos e desertos rumo à terra prometida, sozinho em si até ao ponto em que nada mais escuta senão o seu próprio silêncio. Fecha as portas da casa e fica imóvel sobre as páginas, alheio ao tempo que o envelhece, o tempo indiferente ao labor sofrido que emprega em cada verso, o tempo que se esquece e pára e que o poeta não sente. Porém, não se importa o poeta nem com o tempo nem com a fome nem com a outra vida que do lado de fora das paredes da casa vai passando sem aviso. Escreve porque é esse o seu trabalho, o seu desígnio, a sua função na metafísica roda dos elementos. Nenhum outro destino ou realização lhe parece mais natural que estender em telas de folhas aquilo que por dentro o pinta. A casa vai assim ficando vazia de espaço e por todo o lado se amontoam páginas e cadernos que um dia o poeta deixa finalmente sair pela janela. Cá fora, alguém os agarra e os leva para que o mundo possa enfim espreitar por dentro a alma de outro ser.
Vêm então os livros, os volumes de folhas presas que se aninham em estantes onde as gentes vêm para ver e tocar o génio do poeta. Vêm o reconhecimento, as láureas e as ilustres nomeações que fazem do poeta um homem distinto e honrado. Ano após ano, década após década, o poeta envelhece ao ritmo de edições e distinções. O seu nome ilustra capas, as suas palavras preenchem as obras que outros seguram e percorrem e para si tomam como suas.
De tanto deixar que o seu nome e ser percorram o mundo, chega o instante em que o poeta pouco mais é que esse mesmo nome ilustrando capas e essas mesmas palavras que se lhes seguem. Fica esquecido dentro da casa e percebe que para o mundo nada é senão letras cuidadosamente conjugadas lado a lado consigo mesmas. O poeta, já cansado e farto de si e do mundo que afinal havia escrito a sua poesia, decide deixar-se levar pela cessação derradeira da existência. O poeta morre. Melhor, morre-se-lhe o corpo e a mente, os pensamentos e as ideias interrompem a sua natural cadência, os cabelos brancos e a pele enrugada deixam de embranquecer e de enrugar. A sua alma, se é que a tem, eleva-se ou desce para um lugar qualquer que não se pode experimentar. Mas antes de todo este abandono, o poeta olha pela última vez a terra que lhe fica com o corpo e imagina e contempla os lugares onde descansam o seu nome e as suas palavras. Acredita que afinal não é bem a morte que lhe acontece, antes que subsiste a sua existência no fruto do suor e do labor que empregou na construção de cada verso, no erguer de cada estrofe que agora habita os cantos do mundo. Fecha o olhar sorrindo e já não vê que o tempo um dia há-de percorrer esses lugares e que deles levará as capas com o seu nome e as folhas com os seus versos. Tudo desaparecerá excepto um último volume que resta na biblioteca de uma cidade longínqua ou um amontoado de páginas envelhecidas na prateleira de uma livraria. Na capa desse último volume, ler-se-á Poesia Toda e nas mãos da mulher de chapéu vermelho que agora o folheia descansarão os seus versos, mil oitocentas e trinta e quatro páginas resumindo uma vida.

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