sábado, maio 26

Diários do Deserto 32

Bessalama

Cinco e meia da tarde, aeroporto Mohamed V, Casablanca. O dia começou às seis e meia da manhã. Seguiram-se sete horas de autocarro entre Chefchaouen e Casablanca. Pela primeira vez nesta viagem, sinto-me verdadeiramente cansado. Chega o fim e com ele parece também vir o falecimento das energias. Não que sinta qualquer ansiedade em regressar. Também não sinto pena ou tristeza por o fazer. Regresso com o coração e a alma cheios, seguro de que esta viagem, além de ter representado um crescimento, foi acima de tudo um enorme prazer. Viajar é afinal isso mesmo, crescer através do prazer de experienciar aquilo que nos é estranho, de nos encontrarmos através do encontro com o outro. Viajar de mochila às costas, em orçamento backpacker, leva-nos a enfrentar contrariedades e adversidades em simultâneo com o novo conhecimento que todos os dias adquirimos. Esse conhecimento não é algo que se adquira de forma tipicamente racional, antes o é através dos sentidos. É pois, acima de tudo, um conhecimento de nós mesmos, um verdadeiro preenchimento do ser que se nos constrói por dentro. Verdade é que, paradoxalmente, ao viajar, quase tudo o que nos toca é exterior, é algo que facilmente nos distrai do que somos. Todavia, esse exterior que nos toca não é algo que se limite a ficar à superfície de nós. Porventura movidos pela necessidade de estarmos mais despertos e atentos, quando viajamos o que nos toca toca-nos mais fundo, deixando-nos a impressão de haver tocado o mundo no seu núcleo. A única regra para que tal seja possível é a ausência de julgamento daquilo que se desenrola perante os nossos olhos, daquilo que nos sucede a nós e ao espaço do qual fazemos parte. O julgamento é simultaneamente a maior barreira que nos pode impedir desse verdadeiro crescimento interior. As comparações, as afirmações, as absolutas certezas, toda e qualquer forma de juízo levam-nos para mais longe deste caminho. A pura observação ao mesmo tempo que aceitamos que o que é simplesmente é deixa-nos mais soltos ao sabor da corrente, mais disponíveis para aprendermos e vivermos.

Durante esta viagem, vivi vários tipos de situações, sendo que a quase todas procurei encarar com um sorriso nos lábios, mas sobretudo com calma e tranquilidade. A mesma que senti no primeiro instante em que aqui cheguei. Para isso, assumi um simples compromisso comigo mesmo: caminhar sempre devagar. Fosse no meio da confusão das ruas de Marrakech, fosse no meio da noite de Chefchaouen sem encontrar sítio algum para dormir, procurei fugir à resistência de quem anseia e deixar-me levar pela força imensa que é a ordem natural das coisas. O mesmo procurei fazer quando as coisas não correram como o planeado. O resultado foi uma série infindável de acasos que conduziram a encontros que por sua vez me levaram aos lugares onde fui. Simplesmente isso. Mas o que isso tem de simples é igual à certeza que sinto de que esta viagem não poderia ter sido outra além da que foi, que se o tivesse sido eu não seria aquilo que hoje sou.

E o que sou, não o sei ainda ao certo. Por isso viajo, por isso aprendo e por isso procuro e conheço, por isso vivo. Aqui, agora, neste instante único do presente em que sou.

Casablanca, Marrocos, Abril de 2007

Diários do Deserto 31

Do deserto e sua ausência

Esta viagem não é acerca do deserto. O deserto constituiu o seu motivo, quiçá o seu zénite, mas não a sua verdadeira essência. As viagens são tanto mais plenas e marcantes quanto mais são imprevisíveis. Nesta viagem, o mais imprevisível foi o factor humano. Ao sair de casa, ao deixar Lisboa para trás na primeira manhã de Abril, sozinho, com a mochila às costas em direcção a essa imensidão que idealizava dos livros de História e Geografia, não estaria por certo à espera de encontrar o que vim a encontrar. As pessoas que conheci ao longo desta viagem, os corações com quem partilhei aquilo que o meu próprio coração sentia, os caminheiros que a mim se juntaram e me ajudaram, e finalmente as gentes daqui que me mostraram a riqueza de ser daqui, todos eles constituíram de facto a essência desta viagem. É irónico que tenha pensado nestes escritos como diários do deserto e que, quase chegado ao fim, me dê conta que afinal foi da ausência do deserto, da presença de outros, que se fizeram os dias que por aqui passei, fosse por estarem de facto presentes fosse por marcarem os rumos que tomei. Não quer isto dizer que nesta viagem não tenha tido momentos absolutos quando estava só. Os exemplos maiores disso mesmo são momentos capitais como adormecer em cima das dunas do Sahara, o pôr-do-sol em Essaouira ou a viagem até Tizi n’Test, no Alto Atlas. Talvez que por estar só me tenha sido mais fácil encontrar outros, mas que por encontrar outros talvez me tenha sido mais fácil estar só quando assim foi o caso. Ao final, sei apenas que se tivesse estado sempre ao lado de alguém, a viagem poderia ter-se quedado incompleta pela metade. Ao mesmo tempo que tenho a certeza que se tivesse permanecido sozinho durante toda a viagem, ela não teria sido o que foi, este caminho de sensações que se fizeram das pontes com os corações alheios.

Estes são os nomes que não quero esquecer:

Javier, de Espanha. Com ele fui ao deserto, com ele reaprendi o valor da generosidade. Olho para trás e vejo que com ele percorri mais de metade do percurso desta viagem, desde Marrakech, onde nos conhecemos, até Essaouira, onde nos separámos.

Sandra, Virginie e Manu, de Portugal. Virginie, de cartão Multibanco na mão em Marrakech, foi talvez a responsável por este acaso verdadeiramente feliz. Todas foram também comigo ao deserto. Dormir ao relento sobre o manto de estrelas e de lua cheia no sopé das dunas, o sabor das palavras que trocámos, o regresso a Marrakech, a promessa de um futuro.

Tahar, de Marrocos. Nascido no deserto, filho de pais nómadas, estudou filosofia para depois se dedicar ao mais profícuo negócio do turismo. Foi quem me levou até às dunas de Erg Chigaga, onde ficámos a falar sobre Nietzsche enquanto bebericávamos chá de menta e o sol se punha entre as areias. O seu sorriso, a sua bondade, a sua competência em cumprir aquilo a que se propôs fazem dele alguém muito especial que figurará sempre nas recordações de qualquer viagem.

Jose e Vitor, de Espanha. Companheiros de viagem entre Marrakech e Essaouira, com eles partilhei sobretudo o sabor do marisco fresco do Atlântico.

Andres e Martin, do Equador. Conheci-os mal, mas sem eles Chefchaouen não teria talvez feito parte desta viagem.

Abdel Maler, de Marrocos. O meu jovem companheiro de viagem no autocarro para Chefchaouen trouxe-me ao contacto directo com o que é ser jovem e ser marroquino nos dias de hoje. É sobretudo a sua gentileza que guardo comigo. A sua juventude foi também responsável por algumas das perguntas bem difíceis sobre o que é ser europeu de uma cultura cristã.

Rafael, de Espanha. Cheguei a Chefchaouen a meio da noite e foi a ocasião em que verdadeiramente pensei que dormiria na rua. Rafael, dono do Hotel Alin, recebeu-me com um sorriso e deixou-me ficar no seu quarto, ao fundo de um beliche.

Bilac, Otman, Soufione e restantes amigos, todos de Marrocos. Por me mostrarem e comigo partilharem a alegria da música e da dança no sopé das montanhas de Chefchaouen, por me fazerem sentir o que pode ser felicidade pura.

Anur e Brian, da Nova Zelândia; Paul, da Austrália. Os meus últimos companheiros de viagem com quem partilhei o derradeiro jantar e me deixei ficar pela noite dentro envoltos em fumo de haxixe e rum barato.

A todos, Shukran.

segunda-feira, maio 21

Diários do Deserto 30

Sentir

Chefchaouen é um lugar carregado de boas energias. Não sei se porque o kif (haxixe) é coisa comum e vulgar por estas bandas, se porque são azuis e vivos os tons que inundam as ruas estreitas e íngremes, se porque é domingo e vêm os jovens e as famílias em comunidade alegrar o silêncio com os seus tambores. Não sei porquê, porque será, que me sinto tão bem. Vim aqui trazido, uma vez mais, pelo completo acaso (gracias Andres e Martin, que viva Ecuador!) e agora sinto-me verdadeiramente feliz por ser aqui que venho a terminar esta viagem. As recordações e as aprendizagens são algo sobre o qual reflectirei depois, mas certo é que sinto apenas essa plenitude que advém da inigualável explosão de sentidos que é viajar.

Diários do Deserto 29

Coisas que não cabem em palavras

Chefchaouen

quarta-feira, maio 16

Diários do Deserto 28

Rabat, memórias, tradições e curiosidades

Rabat lembra-me qualquer coisa de Lisboa antiga. Não a Lisboa antiga de séculos e bairros históricos, mas a da minha infância. Mais do que propriamente as geometrias e as formas, são os cafés e as estações de autocarros que me apelam ao instinto da memória. Rabat é a cidade marroquina de maior influência francesa. É como se a Lisboa que me viu criança ficasse a meio caminho entre esta África do Norte e o centro da Europa.

As mulheres de Rabat. Vejo-as sozinhas, sentadas nos cafés, de cabeça destapada, bebericando sumos de laranja e o seu “café noir”. Não que todas as mulheres o façam. Por todo o lado, o islamismo segue a sua tradição, mas o certo é que vejo as mulheres aqui com uma postura e uma atitude que ainda não havia visto desde que cheguei a Marrocos. Pergunto-me porém até onde irá esta “liberalização”. Se a uma afirmação livre, se a uma insatisfação de se encontrar a metade do percurso entre o “ocidentalismo” e esta milenar cultura de tradições e costumes nem sempre favoráveis a quem se vê nascido no sexo feminino. Nas viagens, procuro ao máximo não fazer julgamentos perante o choque cultural e social com que por vezes me deparo. Todavia, desta vez não posso deixar de sorrir perante esta afirmação tão urgente.

Facto curioso observado: os homens cumprimentam-se entre si com um aperto de mão caloroso (muitas vezes com as duas mãos) e quatro – quatro! – beijos na face. Quando cumprimentam as mulheres, os homens limitam-se a um simples e curto aperto de mão.

terça-feira, maio 15

Diários do Deserto 27

Go with the flow

Regressei a Marrakech com a noite e senti de novo a dificuldade de encontrar um lugar para ficar. Todos os hotéis estavam cheios e a cidade a rebentar de gente. Considerei a hipótese de dormir num terraço apesar do céu ameaçador de chuva. Porém, uma vez mais, deu-se o caso de o acaso me fazer sentir ainda mais a inutilidade de se fazerem planos. É de facto incrível como passamos a vida a ralar-nos com isto e com aquilo, a procurar caminhos para depois os perdermos outra vez, a sentir a frustração de não se concretizarem os nossos desígnios, a pensar que a vida é madrasta e a vida é boa porque o que nos acontece se simula nos nossos pesadelos e nos nossos sonhos. E afinal tudo é tão fácil quando simplesmente aceitamos que o que nos acontece é apenas o fruto do nosso caminho, que a essência da vida reside na escolha de comer ou não esse fruto e na forma como o decidimos comer.

Ao chegar a Marrakech já perto das onze horas da noite e sem conseguir um sítio para dormir, pensei que era desta, que finalmente o destino – se destino existe quando é o acaso que dita as regras – me havia trocado as voltas e que afinal sempre algo havia de correr mal nesta viagem. Nada mais errado, nada mais ilusório. No meio de uma rua mal iluminada, entre cenas de pancadaria e homens abandonados, encontrei Andres e Martin, os dois vindos do Equador, país longínquo do outro lado do mundo. Tinham ambos acabado de chegar e estavam também ambos ao sabor da sorte, em busca de um lugar que lhes desse descanso ao corpo depois de uma viagem de mais de nove horas de autocarro. Juntos alugámos o último quarto disponível (para três pessoas, só) situado na última viela de Marrakech. Faltavam-lhes pouco menos de doze horas para saírem de Marrocos e seguirem rumo a Madrid. Despedi-me deles na manhã seguinte, sem mal os ter conhecido, mas decidido a seguir o seu conselho. Durante o pouco tempo em que estivemos juntos, Andres e Martin não pararam de falar em Chefchaouen, uma vila a norte de Rabat, em plenas montanhas Rif. Os acasos são acasos mas devem ser levados a sério. Se dei comigo uma vez mais em Marrakech, ceando com dois improváveis equatorianos que me falavam maravilhas de um lugar, então será melhor seguir as pistas deste caminho. Pouco depois de Andres e Martin terem partido, deixei Marrakech e segui para Rabat, onde é possível apanhar um autocarro para Chefchaouen. Assim, sem rodeios da mente, escolhi o meu próximo destino baseado no que o destino me apresentou. Aguardo na estação de autocarros de Rabat e o sol brilha num fim de tarde tranquilo. Parto dentro de uma hora, uma vez mais sem saber ao que me levo.

Diários do Deserto 26

Musicalmente falando (ou o que vai por dentro do meu leitor de MP3)

Se esta viagem fosse um filme, assim seria a banda sonora:

Rachid Taha – Diwân

Lhasa De Sela – The Living Road

Blasted Mechanism – Avatara

Toumani Diabate – Kaira

Alla – Le Foundou

Muse – (Miscelânea: Thoughts of a Dying Atheist, Sunburn, Con Science, Bliss, Blackout, Ruled by Secrecy, Butterflies and Hurricanes, Sing for Absolution, Muscle Museum, entre outras)

El Hadje N’Diaye, Teofilo Chantre, Cesária Évora, Fernanda Abreu, Meiway, Massilia Sound System, Lenine, Oliver Mtukudzi, Bravo Soledad, entre outros – Drop the debt (Annulons La Dette)

Primal Scream, Groove Armada, UKO, John Lee Hooker, Wayne Jarrett, Freddie McGregor, Paul Weller, Greg Brown, entre outros – Juke Joint

Koop – Waltz for Koop; Koop Islands

Boozoo Bajou – Remixes

Nicos, Karunesh, Platon Andritsakis, Gustavo Montesano, Deepak Ram, Fredrick Rousseau, Eden, Jesse Cook, entre outros – Buddha-Bar Vol. III

segunda-feira, maio 14

Diários do Deserto 25

Coisas que não cabem em palavras

Tizi n'Test



sexta-feira, maio 11

Diários do Deserto 24

Coisas que não cabem em palavras

Estrada para Tizi n'Test





Diários do Deserto 23

Continuar

Deixo Essaouira e sigo de novo rumo às montanhas do Atlas, desta vez para Norte. Javier, José e Vítor ficam todos junto ao mar, os três a falarem de Madrid e das sex shops fantásticas que por lá existem. Assim sendo, estou novamente só. É a primeira vez que tal sucede desde a tarde do dia 1 de Abril, o dia em que cheguei a África. A tarde não chove, as nuvens carregadas no céu abrem passagens por entre as quais espreitam raios de sol e tons de azul. A paisagem tem o encanto de uma aguarela de artista. Avanço pelas montanhas ao som apenas da música, até Tizi n’Test, a mais de 2000 metros de altitude. Quando chego, é já o início do fim da tarde. Nem um turista, nem uma voz, apenas dois solitários contemplam a paisagem. Talvez seja porque a chuva não cai mas ameaça, o certo é que embora passem carros, ninguém pára. A paisagem, essa, é tão ampla e imensa que não cabe num homem só. A contemplação de paisagens infinitas foi coisa que sempre fascinou o Homem e é fácil perceber porquê. Perante algo muito maior que ele mesmo, o Homem deixa-se ficar arrebatado pela beleza e pela transcendência dos sentidos, como se houvesse um reconhecimento e ao mesmo tempo uma tranquila aceitação da sua verdadeira dimensão. Um só homem é pequeno, mas ao mesmo tempo situa-se no centro do universo e é portanto maior que tudo o resto.

Filosofias à parte, sorrio, assobio e canto. Agora que esta viagem ultrapassa a sua metade, não consigo conter a alegria por estar aqui. Talvez que seja por estar só, permito-me finalmente saborear calmamente tudo o que me aconteceu nos últimos dias. Marrakech, a viagem pelo deserto, o contacto humano com as gentes locais e com todos os amigos que já fiz em tão pouco tempo, Essaouira, a vivência total ao sabor do acaso. Apetece-me gritar e grito, apetece-me uma gargalhada e dou. Lembro as palavras de Jorge Palma: “enquanto houver estrada para andar, a gente vai continuar.”

quarta-feira, maio 9

Diários do Deserto 22

Alguns saberes adquiridos

Como regatear: suponha-se que estamos a falar de um jebella. Se o vendedor lhe diz 120 dirhans (mais ou menos 12 euros) saiba que a coisa não valerá mais de 40. Todavia, jamais conseguirá esse preço, nem era bem justo que o fizesse, sobretudo se for europeu e ganhar num dia o que um marroquino ganha numa semana. Além disso, terá também de pagar pelos pacóvios e afins que ou não sabem regatear ou aceitam a primeira patacoada que vem à cabeça do comerciante e assim habituam mal os donos dos quiosques locais – lembro-me sempre daquela turista inglesa em Udaipur na Índia que pagou 3000 rupias (40 euros) por um shawl que valia 150 (2 euros)… Assim sendo, não perca a esperança de conseguir talvez 70 a 80 dirhans pelo objecto em causa. A regra é simples e toda a gente a conhece: peça por baixo, diga por exemplo 50. Depois, não deixe nunca que seja o comerciante a fazer a oferta final. Faça-a você, que sempre lhe faz bem ao ego, apesar de estar a ser explorado, espoliado e vilipendiado no simples gesto de trocar meia dúzia de notas por um roupão com barrete.

Se for parado pela polícia por ir em excesso de velocidade, a multa poderá ir até aos 500 dirhans (50 euros). Diga que só tem 200 (logo, não ande com o dinheiro todo na carteira, meta o resto num bolso escondido da mochila) e faça por chorar um pouco. Está num país estranho, faltam 300 quilómetros até ao seu destino e se der todo o seu dinheiro não tem como seguir viagem se acontecer algum problema. Eu safei-me com uma multa de 100 dirhans e um simpático sorriso do senhor GNR das arábias. Agradeça muito e com deferência. Guardas são guardas e não há um que não goste de sentir que é autoridade.

Se fizer viagens longas de comboio, tente não se sentar do lado da coxia. À medida que a viagem prossegue, o número de passageiros aumenta e o corredor vai ficando atafulhado de gentes por cima de malas e bebés por cima das gentes. Há quem se sinta enjoado e não seja capaz de conter os fluxos digestivos. A mim valeram-me os reflexos, mas mesmo assim fui ferido no antebraço direito. Uma experiência a não repetir a menos que seja um curioso da biologia química.

De acordo com Javier, o meu companheiro de viagem desde o primeiro dia em Marrakech, uma experiência realmente intensa é fazer amor com cantoras de ópera. Seja pela robustez das referidas senhoras, seja pela expressão de um qualquer egocentrismo próprio das divas, o certo é que a coisa, a julgar pela descrição, tem condições para ser dada ao capitulo do inesquecível. Ao que parece, as cantorias não se resumem ao palco e muito menos o alcance da voz. Se algum dia visitar Milão não se esqueça de levar protecções auriculares.

Diários do Deserto 21

Coisas que não cabem em palavras

Pôr-do-sol em Essaouira, África

segunda-feira, maio 7

Diários do Deserto 20

Coisas que não cabem em palavras

Essaouira




Diários do Deserto 19

Observação

Em Essaouira, há muitas esquinas e ruas repletas de comerciantes e turistas. Em Essaouira, há uma esquina, junto à muralha que dá para o mar, onde um rapaz se senta vendendo gorros. São feitos de muitas cores, mas o rapaz usa apenas um simples jellaba branco. Passo pelo rapaz e resolvo por ele não passar. Sento-me escrevendo e observo-o à passagem dos turistas e dos transeuntes locais. O rapaz, de vez em quando, distrai-se do seu ofício para falar com um outro grupo de rapazes. Estes estão um pouco mais adiante, numa outra esquina, e jogam futebol e conversam e riem e fazer rir o rapaz. Este, quando ri, é sabido que ri. Tem uns dentes tão brancos que em linguagem de poeta se diria confundirem-se com a espuma das ondas. Os turistas passam e o rapaz repete os gestos. Aponta, mostra, sorri, fala, discute e regateia preços com os dedos. Faz mais gorros, tricotando com uma mestria capaz de fazer inveja a muitas avós. Os turistas passam e o rapaz mal se levanta. Passam os turistas e passa também o tempo, tempo em que observo e o rapaz não vende um gorro sequer. Só que o rapaz não desiste. Continua. Tricotando e regateando e sorrindo. Por vezes, sem interromper o seu frenético movimento, ergue o rosto e o olhar na minha direcção. Sinto que a minha presença lhe é indiferente. O que lhe interessa e importa são os turistas que passam. Talvez que um deles compre algo e lhe troque o trabalho por dirhans. Mas os turistas passam e para eles também o rapaz passa, um jelleba branco igual a tantos outros numa esquina vulgar. Passam ambos por ambos mais parecendo que trespassam. E assim segue a ordem do mundo, como se os turistas mais não fossem que dirhans passando e o rapaz alguém que antes de ser rapaz já vendia gorros numa esquina de Essaouira, junto à muralha que dá para o mar.

sábado, maio 5

Diários do Deserto 18


Reflexão em torno da infância


Os meninos das ruas de Marrakech não sabem onde vivem os meninos das ruas de Lisboa. E os de Lisboa nada sabem sobre aqueles aos quais o destino lhes trocou as voltas nas ruas de Marrakech. Porém, a ambos lhes toca a vida de serem meninos e de serem de rua. A ambos lhes calhou em sorte o azar de viver de mão estendida, de esperar pelo sorriso e ajuda alheia para depois ver os rostos voltados em recusa. Talvez que os meninos das ruas de Marrakech, se sonharem, pensem que os meninos de Lisboa têm a graça de viver do lado “certo” do planeta. Ou talvez que os meninos de Lisboa nem saibam que Marrakech existe e com ela uma praça onde há meninos como eles à procura da salvação numa moeda de cêntimos. Talvez. Certo é que entre Lisboa e Marrakech o que há são meninos que não entendem porque não perguntam, que não sabem porque o mundo apenas lhes dá isso mesmo, uma moeda ocasional, uma mão estendida e um rosto voltado em recusa.

Diários do Deserto 17

Seguir viagem

Depois de mais um dia de viagem por dunas e montanhas, regresso a Marrakech. O deserto fica definitivamente para trás. Todavia, esta viagem ainda não acabou, está longe de ter terminado. Chego a Marrakech ao princípio da noite, em plena hora de ponta. A confusão do trânsito, das ruas e das gentes são uma exaltação dos sentidos. Volto à praça Djemaa el-Fna com os meus companheiros de jornada. Damos o merecido conforto ao estômago enquanto os olhos e restantes sentidos se perdem entre fumos e vozes. A noite termina com um último chá à porta de um dos souqs e o grupo já incompleto, que o cansaço começa a fazer das suas. Despeço-me das inesquecíveis Manu, Virginie e Sandra com a subtil sensação de termos partilhado algo de especial e único. Volto à casa onde irei passar a noite, num salão improvisado, que por aqui é impossível encontrar alojamento à própria da hora. Quando chego, cheira a haxixe e a conversas de sexo e de filosofia backpacker. Lá dentro está ainda Javier, agora acompanhado de José e Vítor. Madrid e a Galiza acabam de entrar na geografia e nos mapas desta viagem. Seguiremos os quatro no dia seguinte para Essaouira, na costa Atlântica. Depois da secura das areias, calculo que me vá saber bem o mar.

quinta-feira, maio 3

Diários do Deserto 16

Coisas que não cabem em palavras

Desert dawn


Diários do Deserto 15

Noite

Caiu a noite. Lua cheia, camelos que passam na escuridão inundada de luz. Deixo-me ficar a dormir ao relento debaixo de um céu sem memória. A paz, o espanto, a felicidade. Tenho ainda muito calor para viver até que chegue o frio gelado da madrugada, debaixo deste céu. Sem memória.

terça-feira, maio 1

Diários do Deserto 14

Coisas que não cabem em palavras

Sahara

Abril 2007