quarta-feira, setembro 5

Viagem ao Centro das Américas 61

Existe uma América Central que não aparece nas fotografias da minha viagem. A América Central dos homens dormindo nas ruas, abandonados, bêbados, finalmente esquecidos da merda de vida que levam; a América Central dos putos de roupas sujas e rasgadas, de peso à cabeca ou às costas, trabalhando ao lado dos seus pais. Não tirei nenhuma fotografia à mulher que em Livingston, Guatemala, se arrasta pelas ruas com uma cadeira servindo-lhe de muleta enquanto grita “please help me, some money” numa voz de choro, nenhuma fotografia aos velhos e velhas de mãos estendidas e corpo estropiado. Não tirei fotografia alguma porque tenho vergonha de o fotografar, porque me parece uma ofensa apontar a minha câmara fotográfica de 500 euros a um homem que nunca viu 500 euros na vida. Podia tê-lo feito com base no argumento “forma de denúncia”. Tretas. Quem visse as fotos diria o mesmo de sempre, o mesmo que eu tantas vezes disse: “Que horror! Impressionante! Como pode ser!” e depois seguiria com o rumo natural das suas vidas. Não, não seria denúncia alguma, seria apenas uma forma subtil de explorar a miséria alheia.

Há algo de errado com o mundo quando crianças fazem as vezes de co-pilotos em autocarros e camionetas, quando crianças trabalham em lojas e servem de guias a turistas tão distantes de si como da sua realidade. Há algo de errado com o mundo quando pais e mães vivem com 1 euro por dia e outros gastam 100 euros numa hora em felicidades feitas de plástico. Ou então pode ser que nada haja de errado com o mundo e sejam apenas as realidades inevitáveis da vida. E afinal vá-se lá saber de que lado mora o certo e o errado, o que é o insuficiente e o suficiente. Eu pergunto apenas porquê porque não percebo. Como podem os miúdos e os homens e mulheres que percorrem estradas e caminhos das Honduras e da Guatemala terem os sapatos rotos e habitarem o mesmo mundo dos miúdos e homens e mullheres que se passeiam pelas ruas de um qualquer centro comercial nas cidades dos Estados Unidos e da Europa, hipnotizados pelas montras e há muito alheios da importancia das suas necessidades básicas. Porque não entendo, pergunto. Porque quanto mais vejo do mundo mais ignorante me sinto.

Não, há uma America Central que não figura no album de fotografias da minha viagem, afinal essa America detentora de algumas das imagens mais fortes e importantes que retive. Estas imagens, estas visões, ficarao todavia sempre comigo. A América Central que não está nas fotografias existe. A América Central das misérias e dos sofrimentos inadmíssiveis existe. E está dentro da minha cabeca.

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