quarta-feira, agosto 4

Viagem na minha terra 9



9. Exercício à alma de viajante

Há dias assim. Todas as viagens têm dias assim. Dias em que os planos saem furados, em que apanhamos comboios para sítios errados, não porque o comboio esteja enganado, mas porque há algo de errado com os sítios. Dias em que falhamos o planeamento dos horários e damos por nós em esperas infindáveis por coisa nenhuma em lugar nenhum, dias que nos doem nas pernas por andarmos demais e por sabermos que podíamos ter andado menos. Dias assim são um exercício à alma de viajante. É nestes dias que sabemos se estamos aptos a deixar fluir a ordem natural das coisas, a aceitar que o que a viagem nos traz é aquilo que tem mesmo de nos trazer. É que dizer que se viaja ao sabor da corrente, na perfeição de cada momento, é muito mais fácil quando a viagem corre bem. O verdadeiro teste é quando corre mal, ou pelo menos quando não corre da forma que seria mais fácil. Vejamos.
O dia começa cedo. Depois do pequeno-almoço a sós com a televisão apagada da Pensão Petisqueira, deixo a cidade-berço a caminho da estação. Quero apanhar o comboio que sai perto das dez e me leva até Lousado, onde deverei chegar pouco mais de meia hora depois. Aí, terei de trocar para novo comboio que me deixará em Nine, onde apanharei finalmente a linha do Minho que me levará até Valença, no limite da minha terra. Foi este o percurso que estudei e que, apesar das trocas, me fará esperar menos, sendo que as trocas acabam por atenuar as esperas, já que enquanto um comboio vai e vem é menos tempo passado em gares que se chamam Lousado e Nine. Chegado à bilheteira, peço então o bilhete para todo o percurso. O senhor por trás do vidro tem, no entanto, uma alternativa melhor. “Não é preciso tanta troca amigo. Vai daqui direito à Trofa e de lá apanha logo a linha do Minho para Valença.” Ena, parece que afinal a internet não supera o engenho humano. O percurso estudado no site da CP dava mais trocas e estações que este senhor por trás do vidro. Muito bem, respondo, mas assim quanto tempo espero na Trofa? “Hora e meia. Dá por lá uma volta e vai à sua vida.” Penso: hora e meia de espera não custa muito, é tempo que aproveito para preparar, sei lá, o próximo post do blog. Aceito e vinte minutos depois estou a caminho.
Quarenta e cinco minutos depois, chego à Trofa, pronto a procurar um café onde possa comer qualquer coisa e passar a hora e meia que me falta. Mas nada feito. Sem preciosismos de qualquer espécie, e com perdão das gentes de semelhante lugar, a Trofa é horrível. Uma estação donde se vê uma igreja emparedada por prédios a fazerem lembrar os subúrbios da Checoslováquia dos anos 70 e um bar na estação onde as águas supostamente frescas estão guardadas dentro de um alguidar com água morna. Demora-me dois minutos a perceber que não vou ficar aqui nem cinco. Decido então seguir para Ermesinde, por onde passei ontem e esperei calmamente num café simpático de frente para uma praça espaçosa. É o que faço, mas isto custa-me quase mais três euros e meia hora a andar de um lado para o outro. De regresso à Trofa, lá apanho finalmente o comboio para Valença. Desta é que é, digo de mim para mim, o estômago a sonhar com o almoço de frente para nuestros hermanos do outro lado da fronteira.
A viagem para Valença corre sem problemas até ao momento em que um estrondo abala o sossego dos passageiros. O vidro de uma das portas é atingido por qualquer coisa arremessada de fora e estilhaça-se em centenas de bocadinhos. A viagem continua, mas quando estamos perto de chegar a Caminha, o revisor irrompe pela carruagem em voz alta: “Meus senhores e minhas senhoras, vamos todos trocar de composição na próxima estação.” Não vale a pena protestar que este comboio era directo e que toda a gente aqui comprou bilhete para ir directo. De Caminha, este comboio não passa. Lá chegados, saio para a gare que estala de calor. São quase duas da tarde e do ar fresco que podia vir do mar próximo nem sinal. Pacientes, todos os passageiros percorrem a pé a distância que nos separa da composição seguinte. Demora quase mais meia hora a partir. Vale que nesta parte da viagem, o mar aparece nas janelas e inunda as vistas com a calma própria das grandes paisagens. Nisto, porém, uma mulher atrás de mim chora ao telefone. “Parecia que Deus adivinhava, mãe. Ainda ontem a fui visitar e hoje a Mafalda telefona-me de manhã. Ó prima, a minha mãe morreu. E eu naquela aflição. Ai Jesus, mãe…” Dois bancos à minha frente, a juventude vai indiferente a caminho do festival de Paredes de Coura. Eu, no meio, dou conta das ironias neste dia de tragédias e comédias.
São quase três da tarde quando o comboio chega por fim a Valença. O que me espera do lado de fora da estação é, no mínimo, inesperado. Apesar de uma avenida simpática, o resto são prédios e mais prédios, dois deles as únicas residenciais perto do centro. Fico a pensar para onde foi o planeamento urbano da minha terra enquanto como finalmente qualquer coisa numa esplanada feita de sombras. Apesar do cansaço, percebo que não vale a pena ficar aqui. A minha terra tem destas coisas, lugares que são o retrato de um país pequeno. Volto à estação. Faltam quinze minutos para o comboio partir de volta. Acabo por decidir, como o poeta, voltar a Viana. A tarde já vai para lá de meio quando vejo o mar ao fundo da avenida. Doem-me os pés, as costas e as pernas, mas sorrio com o deslumbre do azul. Já percebi para que foi isto tudo. Foi para chegar aqui.

Sem comentários: