Kapuscinski, perdido na Índia e sem saber mais nenhuma língua além do polaco, tem consigo apenas uma cópia das Histórias de Heródoto em polaco e um exemplar do For Whom the Bell Tolls de Hemingway em ingles. Escreve:
Porém, apesar de imerso em águas fundas, nao me queria afogar e compreendi que a salvaçao estava na língua. Comecei a reflectir sobre Heródoto, e como ele, viajando pelo mundo, resolvia a questao linguística. Hammer afirma que além do grego Heródoto nao conhecia língua nenhuma (...) Estando-me vedado o caminho de volta, tinha de enfrentar o desafio. Comecei a empinar o léxico dia e noite. Punha uma toalha molhada na testa porque tinha a impressao de que a cabeça ia rebentar. Nao me separava do Hemingway, mas agora lia os diálogos, que eram mais acessíveis que as descriçoes.(...) Comecei a sentir-me mais seguro. Passeava pelas ruas a tomar nota das inscriçoes das lojas, dos rótulos das mercadorias, das palavras ouvidas nas paragens dos autocarros. No cinema anotava na escuridao as legendas do ecra, copiava até slogans das manifestaçoes de rua. Conhecia a Índia nao pelas imagens, sons e cheiros mas pela língua. (...) A minha luta com a Índia começou inicialmente pela contenda com a língua. Compreendi que cada mundo tem o seu próprio segredo e que o único caminho para o desvendar passa pelo conhecimento da língua. Sem esse instrumento, este mundo continuará impenetrável e incompreensível para nós, apesar dos anos que aí possamos viver. (...) Brevemente me dei conta de que, quanto mais palavras conhecer, mais rico e mais complexo será o mundo que se vai desvendar á minha frente.
in Andanças com Heródoto
Kapuscinski sabe bem do que fala. A língua é a porta de entrada principal para outra cultura, para outro país, para outro mundo. O espanhol que falo - nem eu mesmo o sabia - é mais do que suficiente para poder comunicar, mas, mais importante, é suficiente para conseguir entender quase tudo o que se passa ao meu redor. Depois há o ingles. Outros viajantes que vou conhecendo e que nao estao confortáveis com o espanhol falam com quase toda a certeza ingles. Vejo-me assim numa invejável posiçao que nunca como até aqui havia sentido de forma tao crucial. O domínio das línguas é sobretudo importante porque nos leva mais longe no alcance dessa comunicaçao. Um diálogo pode ser tao simples como perguntar quanto custa uma garrafa de água ou elaborado a ponto de discutir os valores éticos universais que sao transversais a todas as culturas e religioes. Isto permite-me cumprir um dos meus maiores propósitos quando viajo: estabelecer uma ligaçao com os outros, compreende-los, entender a sua forma de ser e de pensar. Kapuscinski tem razao. A língua nao só torna impossível perder-nos por completo como acelera a ligaçao com o mundo que nos rodeia. E nessa ligaçao descubro que os seres humanos sao de facto diferentes nos seus apsectos culturais, mas muito identicos na sua forma de sentir. Se falar da forma de estar á mesa, sobressaem as diferenças. Porém, se o assunto for, por exemplo, as relaçoes com outros, os sofrimentos e alegrias que daí advem, o que sobressai sao as diferentes experiencias mas nao a distinçao entre ser-se de este ou daquele lugar. No outro lado do mundo, onde ninguém fala a minha língua, percebo o quao perto estou do lado de onde venho.
1 comentário:
... que bonito, o que escreves...
Continua a usufuir.
Carla
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