sexta-feira, janeiro 8

Adeus a um amor distante

Há mortes que nos custam sem que saibamos muito bem porquê. Nunca a conheci pessoalmente e nem sequer a vislumbrei alguma vez ao vivo e em pessoa. O melhor que lhe conhecia era a sua voz. E a sua música. Tinha uma vaga ideia da sua história. A sua educação errante, as suas origens distintas, o seu poliglotismo. De resto, mais nada. Não faço ideia de que assuntos gostava de conversar, quais as suas opções políticas, qual o seu lugar favorito, a sua infância mais marcante, o que amava e quem amava. Sabia muito pouco sobre ela e mesmo da sua música tinha um conhecimento limitado. Conhecia-lhe dois álbuns de originais completos e nem sequer imaginava que tivesse já um terceiro, editado há pouco mais de seis meses.

Conhecia-a em Marrocos, a caminho do deserto. As suas canções falavam de estradas e de países distantes, de partidas e chegadas, de amores vindos e desavindos. Sozinho, com a velha mochila de sempre, era a sua voz que me fazia companhia enquanto vivia a entrega absoluta ao divino da errância. Quando cheguei ao deserto, fiquei no silêncio, mas era já a ela que escutava quando queria ter música em mim. Depois, continuou sempre comigo, viajando a meu lado, conversando em palavras que pareciam feitas à medida dos momentos. Algum tempo depois do deserto, cheguei à América Latina. E ela lá estava, como se o seu canto fosse os meus passos. Os locais falavam uma língua que corria solta como uma criança e eu apaixonei-me. Caí de amores pela alegria que estalava entre as sílabas. A língua que as gentes falavam era a língua que ela cantava, e isso só serviu para que me apaixonasse ainda mais pela mulher que trazia sempre comigo desde o deserto.

Lhasa de Sela morreu na primeira noite do ano. Não a conhecia, por isso não sabia que lutava há já muito tempo com um cancro. Quando li a notícia do seu desaparecimento, senti o choque que é próprio das mortes que não esperamos. Não sei porquê, mas tive vontade de a abraçar para me despedir. Dizer-lhe que, mesmo não a conhecendo, a sentia muito próxima. E que descansasse. Porque a sua voz e a sua música hão-de continuar a viajar para sempre. Nem que seja na mochila de um qualquer viajante solitário a caminho do deserto.

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