Do deserto e sua ausência
Esta viagem não é acerca do deserto. O deserto constituiu o seu motivo, quiçá o seu zénite, mas não a sua verdadeira essência. As viagens são tanto mais plenas e marcantes quanto mais são imprevisíveis. Nesta viagem, o mais imprevisível foi o factor humano. Ao sair de casa, ao deixar Lisboa para trás na primeira manhã de Abril, sozinho, com a mochila às costas em direcção a essa imensidão que idealizava dos livros de História e Geografia, não estaria por certo à espera de encontrar o que vim a encontrar. As pessoas que conheci ao longo desta viagem, os corações com quem partilhei aquilo que o meu próprio coração sentia, os caminheiros que a mim se juntaram e me ajudaram, e finalmente as gentes daqui que me mostraram a riqueza de ser daqui, todos eles constituíram de facto a essência desta viagem. É irónico que tenha pensado nestes escritos como diários do deserto e que, quase chegado ao fim, me dê conta que afinal foi da ausência do deserto, da presença de outros, que se fizeram os dias que por aqui passei, fosse por estarem de facto presentes fosse por marcarem os rumos que tomei. Não quer isto dizer que nesta viagem não tenha tido momentos absolutos quando estava só. Os exemplos maiores disso mesmo são momentos capitais como adormecer em cima das dunas do Sahara, o pôr-do-sol em Essaouira ou a viagem até Tizi n’Test, no Alto Atlas. Talvez que por estar só me tenha sido mais fácil encontrar outros, mas que por encontrar outros talvez me tenha sido mais fácil estar só quando assim foi o caso. Ao final, sei apenas que se tivesse estado sempre ao lado de alguém, a viagem poderia ter-se quedado incompleta pela metade. Ao mesmo tempo que tenho a certeza que se tivesse permanecido sozinho durante toda a viagem, ela não teria sido o que foi, este caminho de sensações que se fizeram das pontes com os corações alheios.
Estes são os nomes que não quero esquecer:
Javier, de Espanha. Com ele fui ao deserto, com ele reaprendi o valor da generosidade. Olho para trás e vejo que com ele percorri mais de metade do percurso desta viagem, desde Marrakech, onde nos conhecemos, até Essaouira, onde nos separámos.
Sandra, Virginie e Manu, de Portugal. Virginie, de cartão Multibanco na mão em Marrakech, foi talvez a responsável por este acaso verdadeiramente feliz. Todas foram também comigo ao deserto. Dormir ao relento sobre o manto de estrelas e de lua cheia no sopé das dunas, o sabor das palavras que trocámos, o regresso a Marrakech, a promessa de um futuro.
Tahar, de Marrocos. Nascido no deserto, filho de pais nómadas, estudou filosofia para depois se dedicar ao mais profícuo negócio do turismo. Foi quem me levou até às dunas de Erg Chigaga, onde ficámos a falar sobre Nietzsche enquanto bebericávamos chá de menta e o sol se punha entre as areias. O seu sorriso, a sua bondade, a sua competência em cumprir aquilo a que se propôs fazem dele alguém muito especial que figurará sempre nas recordações de qualquer viagem.
Jose e Vitor, de Espanha. Companheiros de viagem entre Marrakech e Essaouira, com eles partilhei sobretudo o sabor do marisco fresco do Atlântico.
Andres e Martin, do Equador. Conheci-os mal, mas sem eles Chefchaouen não teria talvez feito parte desta viagem.
Abdel Maler, de Marrocos. O meu jovem companheiro de viagem no autocarro para Chefchaouen trouxe-me ao contacto directo com o que é ser jovem e ser marroquino nos dias de hoje. É sobretudo a sua gentileza que guardo comigo. A sua juventude foi também responsável por algumas das perguntas bem difíceis sobre o que é ser europeu de uma cultura cristã.
Rafael, de Espanha. Cheguei a Chefchaouen a meio da noite e foi a ocasião em que verdadeiramente pensei que dormiria na rua. Rafael, dono do Hotel Alin, recebeu-me com um sorriso e deixou-me ficar no seu quarto, ao fundo de um beliche.
Bilac, Otman, Soufione e restantes amigos, todos de Marrocos. Por me mostrarem e comigo partilharem a alegria da música e da dança no sopé das montanhas de Chefchaouen, por me fazerem sentir o que pode ser felicidade pura.
Anur e Brian, da Nova Zelândia; Paul, da Austrália. Os meus últimos companheiros de viagem com quem partilhei o derradeiro jantar e me deixei ficar pela noite dentro envoltos em fumo de haxixe e rum barato.
A todos, Shukran.
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