sexta-feira, março 6

Diários do Acaso 1


O começo da viagem


São nove horas quando o despertador toca pela primeira vez, quase onze e um quarto quando toca pela segunda. Adormeci. O dia começa pois com um acaso não planeado, um contra-plano. Plano? Que plano? Não há grande plano e é de propósito, mas existem algumas prerrogativas básicas. Primeira: acordar vagamente cedo e começar a viagem ainda pela manhã. Segunda: apanhar o autocarro vinte e oito e seguir desde Belém até à Estação do Oriente. Terceira: uma vez lá chegado, ver os horários dos próximos comboios e escolher um destino. A partir daí, o desconhecido. A viagem começa assim sem saber onde há-de terminar. Como todas as viagens. A diferença é que agora começo sem ter sequer uma ideia de onde vou chegar, quando antes tive pelo menos essa concepção vaga de destino.

Onze e vinte. Nem uma prerrogativa mínima se consegue manter fiel. Penso em todos os autocarros e comboios que não apanhei nestas duas horas e vinte minutos imprevistas. Penso não os devia ter apanhado e começo o dia com calma. Como uma viagem.

Um duche, um pequeno-almoço, um café no Sr. Peixoto, e uma hora depois estou na paragem do vinte e oito a meio da rua dos Jerónimos. O autocarro amarelo articulado chega dez minutos depois. Segue-se quase uma hora junto ao rio das tágides. Encosto-me para trás e sorrio com o horizonte de mais uma jornada. A perspectiva de me fazer viajante é suficiente para tornar diferentes até os lugares mais normais do quotidiano. O autocarro passa na rua do Arsenal e detém-se por instantes no meio do trânsito lisboeta. Olho pela janela e do outro lado do passeio uma porta encerrada lembra o tempo implacável que vai deixando Lisboa para trás. Por cima da porta, o nome que mal se percebe no meio da ruína. “Tabacaria Rei das Canetas”. Por cima do letreiro centenário, uma placa mais moderna faz publicidade a uma moderna agência imobiliária. “Vende-se”. A memória.

O vinte e oito segue o seu percurso e pelo meio entram pessoas como personagens. Uma senhora senta-se à minha frente e a única coisa que ocorre observar é a tristeza que traz nos olhos. Faz lembrar o letreiro no meio da ruína e penso como é curioso que a cidade e a gente se ligue tão completamente. Pouco depois, duas adolescentes sentam-se por perto, entre os ferros que separam os assentos. Falam alto e riem alto e assim continuam quando, já em Santa Apolónia, uma outra mulher entra. O cabelo espetado e sapatos lunares não lhe escondem a idade. Traz uma camisola cor-de-rosa e meias listadas de verde tapam-lhe os tornozelos grossos. É impossível não sorrir. Sorrio eu e riem as adolescentes. Só a senhora de olhos tristes à minha frente continua de olhos tristes à minha frente. Quatro pessoas num espaço tão pequeno e a humanidade outra vez a mostrar-me o diverso do seu ser. Até o instante mais ínfimo do quotidiano é uma viagem.

O autocarro pára a poucos metros da estação do Oriente. O calor aperta quando desço para o passeio. Digo a mim mesmo que é Fevereiro para refrear a vontade de ser Verão. Subo as escadas cinzentas sob a sombra das famosas palmeiras feitas de progresso. O que estará escrito no ecrã das partidas? Para onde me leva o acaso que é destino?


2 comentários:

Brunorix disse...

Boa Viagem!

Anónimo disse...

es o maior...menos nas setas!!!


carlos santos


tras-me entao ovos moles