Ontem choveu. E porque ontem choveu, vejo daqui o campo transpirando verde. O vapor na lonjura é o hálito da madrugada, o campo que canta alvoradas de silêncio.
Vejo daqui o campo e vejo que ontem choveu porque não chove já. Ao fundo, na linha do céu, o campo fita-me na quietude dos moinhos sem vento. Está tão sossegado o ar que se Quixote aqui estivesse não teria com quem lutar. Só o verde do campo me anuncia as lágrimas escorridas das nuvens. Olho este verde e lembro que outrora esta terra foi minha, que aqui encontrei o amor, que neste lugar foi que para sempre esqueci o medo. Que foi este o lugar do incêndio, o lugar do fogo que apagou o verde. Não este, mas outro, feito de ventos saltando por cima das árvores, feito de gritos caídos do céu sem lágrimas.
Só que esse tempo passou. E agora apenas este verde calmo e ao centro do verde o vermelho que se vê de noite, um ribeiro que nunca se confunde com o céu. É o meu sangue. Ficou do coração que um dia morreu sobre este campo. Depois do medo para sempre esquecido, depois do verde para sempre apagado pelo fogo.
Olho o campo e do fundo do campo vem a voz. Vem o grito que faz nascer o sol. É a voz da mulher que passa e grita que é louca e diz que importa que ontem tenha chovido. Chega perto da janela e o vestido amarelo colado nas coxas desperta o desejo de me ver enfim sem o fogo que apagou o verde. A voz tem o cabelo agarrado à face pela água que ontem escorreu como lágrima. E grita e volta a gritar que importa que tenha chovido, que importa o fogo, para que quer o universo saber do rio de sangue correndo onde outrora havia um coração. A voz ri alto e ri à gargalhada e da janela vejo o sol inchar como se prendesse a respiração. A mulher cola-me a face às coxas e o cheiro do sexo levanta o vapor da madrugada. O verde perde-se no amarelo vivo que vem do sol e se despenha no vestido da mulher. A voz. O incêndio. A chuva. Que importa todo este silêncio?
(o meu coração onde está? não o encontro nas coxas da mulher e o rio correndo vermelho ainda por cima do verde apagado pelo fogo.)
(o coração que morra, deixá-lo morrer!)
A voz grita, grita o vestido e o sol a inchar, a inchar e já não consigo ver o campo, apenas o cheiro do sexo saltando por cima das árvores, sem o coração para sempre morto na torreira do sol. O sol que explode e inunda a janela de chamas. Outra vez o fogo. A voz rindo, gritando alto até se extinguir no silêncio, o verde que há-de voltar a nascer e há-de voltar a morrer. E o campo a procurar o coração, sem saber que se perdeu por entre os gritos.
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