sábado, maio 2

Diários de uma moeda ao ar 2


Chego a Salamanca ao final do dia. O carro estacionado e a mochila outra vez presa nas costas. Quando sinto o peso das alças sobre os ombros tenho a sensação de que voltei a casa. Caminho. Vou à procura de um lugar para ficar, uma cama onde passe a noite, mas qualquer lugar me serve para me procurar a mim mesmo. Por isso, tenho em Salamanca a exaltação das descobertas, apesar de já aqui ter estado dezenas de vezes. Contemplo a cidade no seu ritmo de sempre, a luz que não é castanha mas que se faz castanha sobre a cor de areia das pedras, as gentes que regressam como se a noite lhes trouxesse um recomeço. Vou caminhando por entre tudo isto até chegar às arcadas que anunciam a Plaza Mayor. Do outro lado está a História. Nunca me canso desta visão de assombro, um rectângulo perfeito cheio de gente que nos torna parte de um monumento.


A entrada da Pensión Robles é-me familiar. Subo a escadaria antiga, a madeira que range antes do bater da porta. Do outro lado está uma senhora gorda, gordíssima, que me pergunta ao que venho e de onde venho. Surpresa: a palavra Portugal dá-lhe um arrepio no olhar. “Es que a mí no me gusta los portugueses…” Ainda assim diz-me que sim, que arranja uma cama por esta noite. Fico. Gostei da sinceridade da mulher gordíssima. Não é todos os dias que alguém nos diz na cara que não gosta do nosso país. Decido antes virar a mesa, conquistar a mulher, mostrar-lhe que pode haver pelo menos um português que lhe mude a opinião. Enquanto preenche os papéis, conversamos. Sobre tudo, sobre nada, sobretudo conversamos e nessa conversa talvez que a mulher entenda que não somos as nossas nacionalidades, que agora somos duas pessoas conversando sobre tudo e sobre nada. Quando me entrega a chave, a voz está mais cordial e consigo pressentir-lhe um travo de simpatia. Talvez que a tenha conquistado, mas o certo é que ela me conquistou. A mulher gorda da Pensión Robles está-se nas tintas para o que os outros pensam.


Entro no quarto e descanso um pouco antes de sair de novo. Cá fora, Salamanca acorda para o despertar da noite. “Tapas” e “cañas” e gente pelas ruas e cafés e restaurantes cheios de vida. Não estou em casa, mas podia bem estar. Ocorre-me que uma cidade ou um lugar pode receber-nos como a mulher da Pensión Robles. Olhar-nos como forasteiros de quem se desconfia ainda que aceite que fiquemos. Depois podemos ser nós a escolher. Aprender a conquistar a cidade e nessa conquista descobrir o segredo para que nos sintamos em casa.

1 comentário:

t disse...

Existe algo do outro lado do espelho que nos faz procurar o perfume da vida. Alguns são passageiros da sua própria carruagem, outros reduzem toda a sua existência na busca pelo caminho. Um abraço