António era de Lisboa. António era Lisboa. Todos os dias, descia as escadas de madeira podre e desembocava na Rua da Madalena mesmo a tempo de ver nascer o dia. Àquela hora a hora era de mais uma madrugada, gaivotas e o chão molhado, Lisboa bocejando depois de mais uma noite mal dormida. António descia as escadas, o chapéu cinzento na mão enrugada e os pêlos brancos presos no queixo antes da navalha do Gomes, barbeiro do Borratém, lhes cortar a esperança de crescer. Como António, aqui nascido e criado, marinheiros e prostitutas e gente vinda de toda a parte e agora os ingleses de olhar aberto como se Lisboa existisse desde ontem. António não tem em si a esperança mas a modorra dos dias iguais, a certeza segura que encontra na calçada da Rua da Madalena e no chapéu cinzento que deixa cair sobre a cabeça lisa e desgrenhada.
António vai devagar. O passo leve até ao Martim Moniz, a espera, o café do Ruço que só abre às sete e meia. Uma carcaça e um galão.
(o médico diz que o leite é bom. é bom para os ossos, não importa as dores de barriga)
Depois, outra vez a praça, a manhã crescendo no olhar de António e Lisboa abraçando-o com o sol.
(como vai o velho amigo?)
Só que hoje Lisboa não está para o aturar. Tem em si o frenesim das grandes capitais, quer o sol mas também quer a lua e grita e diz que a manhã não passa, que o tempo não passa, que quer a noite e se a noite não chega jura que há-de matar o velho. O chapéu cinzento e a barba ainda por fazer, sempre igual e todos os dias Lisboa tem de o abraçar e todos os dias Lisboa tem de lhe lembrar que a vida é um tédio e que se não fosse Lisboa já o velho não seria nada.
(parece que se chama António, Lisboa lembra-se de o ver nascer num tempo em que ainda sentia carroças e cavalos correndo sobre si)
Lisboa tem em si a agitação de não saber o que lhe há-de suceder mas de quem sabe que algo lhe há-de suceder. Sente o coração estalar por baixo das águas e tem a impressão que ou desata a chorar e se inunda nas margens ou começa a rir e se deixa levar pela cacofonia dos ares. É isto que Lisboa sente antes de se abrir em golfadas que a fazem sentir-se por dentro, as entranhas respirando e o corpo crescendo e o corpo arfando, Lisboa chora e ri ao mesmo tempo, vê a gente correndo louca e o ruído que se não cala. Lisboa vai-se afundando nas águas, mas fica muda de espanto quando vê o velho.
De corpo quieto, o chapéu sobre a calçada, António impávido nas suas certezas, nos seus lugares de sempre, indiferente à Lisboa que treme e chora e ri antes de se afundar nas águas.