A viagem
Chego à estação de Fátima quinze minutos depois das seis da tarde. À volta apenas árvores e meia dúzia de casas. Para que lado fica a cidade? Apenas uma estrada passa e as duas pessoas que saíram comigo do comboio desaparecem rapidamente. Alguma coisa não está bem. Reparei que os carros que saíram do largo em frente à estação – provavelmente levando consigo os outros passageiros – seguiram todos na mesma direcção, à esquerda do edifício minúsculo que alberga as bilheteiras. É pois nesse sentido que começo a caminhar. Vejo uma curva e penso se a cidade estará depois. O problema é que me lembro de Fátima, de por lá ter estado há alguns anos e de por lá ter passado em dezenas de viagens de autocarro rumo a norte. E Fátima não é nada disto. Depois da curva, nada. Continua a estrada rumo ao desconhecido e a noite cada vez mais perto. Cem metros mais à frente, encontro uma bomba de gasolina. Está deserta, mas atrás do balcão descubro uma rapariga de cabelo despenteado remexendo papéis com um ar despreocupado. Parece estar a contas com a contabilidade do dia e saúda-me como se eu fosse a última pessoa que estivesse à espera de ver àquela hora naquele lugar. Pergunto-lhe se caminho na direcção correcta, no sentido de Fátima. Responde-me que sim, mas o olhar em suspenso deixa-me ainda mais apreensivo. Tenho de fazer a pergunta, mesmo que tenha medo da resposta. Quantos quilómetros? A rapariga ri-se. Vinte e cinco.
(Não é de cá, coitado…)
Não, não sou de cá e os senhores do caminho de ferro também não devem ser. Quem terá tido a ideia peregrina de chamar a esta estação “Fátima”? Talvez se pudesse chamar estação “zona de Fátima” ou estação “o mais perto de Fátima que conseguimos arranjar”. Agora sim, sinto-me um peregrino. Tenho esta estrada toda até ao santuário e apenas as minhas pernas. Penso em quantos terão por aqui passado a caminho de uma promessa por cumprir.
Volto à estação. Apenas um táxi, mas o preço que o motorista me diz seria suficiente para voltar já para Lisboa ainda a tempo de jantar fora. Pergunto se há autocarros. O último terá passado há uma hora atrás.
(É uma maçada, sabe. Não estão certos com os comboios e mais a mais hoje não há escola, parece que passam ainda menos.)
Decido tentar a sorte da boleia. Caminho pela estrada e estendo o polegar. Passam dez minutos até que pare o primeiro carro. Um Opel Corsa do século passado e lá dentro três bêbados. Um deles dorme no banco de trás e nem acorda quando abro a porta. Os outros dois vão no banco da frente, sendo que um deles tem as mãos no volante. Diz-me que só vai até Ourém. A música no auto-rádio, o sorriso amigável do condutor e o cheiro a cerveja dizem-me que esta poderia bem ser uma aventura de antologia. Apenas decido não o fazer porque quando chegar a Ourém será já de noite e portanto mais difícil de arranjar boleia. Prefiro arriscar a sorte e tentar uma boleia que me leve directamente a Fátima. Animados, os meus benfeitores desejam-me a melhor das sortes enquanto o carro arranca no meio do fumo do tubo de escape.
Passa mais algum tempo. A noite é quase uma certeza quando um segundo carro encosta alguns metros à frente do meu polegar. Lá dentro está o Zé Carlos, empresário da distribuição de mariscos, a camisa branca impecável e o cabelo arranjado em gel. Em boa gíria, o verdadeiro “pintas”. Assim que o carro arranca decido que já que estou a caminho de Fátima, este é o momento certo para rezar. Qualquer diferença entre o Zé Carlos e um condutor de ralis é pura coincidência. A mão direita segura o telemóvel enquanto a esquerda vai metendo mudanças. Os joelhos seguram o volante nos intervalos. Tudo isto a alta velocidade, cortando curvas e contracurvas. Talvez devesse ter aproveitado a oferta dos bêbados, talvez pudesse ter ficado a dormir em Ourém e continuar vivo e inteiro por mais um dia.
O que acontece a seguir é mais curioso que assustador. Começamos a conversar. Por qualquer razão, Zé Carlos conta-me em pouco tempo o que foi a sua vida. Em miúdo, veio de Cabo Verde e os pais instalaram-se nos arredores de Sintra. Inadaptado a uma realidade “de meninos ricos”, não demoraram muito os problemas na escola. Problemas disciplinares, suspensões e expulsões (que os tempos eram outros), não restou grande alternativa senão o trabalho. Percebeu cedo que o segredo do negócio está na oportunidade. Foi aprendiz de mecânico, vendedor de stand, distribuidor, até chegar o dia em que decidiu arriscar e montar o seu próprio negócio. Um self-made man, portanto. O problema foi o resto. (As mulheres, pá, as mulheres). Casou, mas não demorou muito o divórcio e agora o filho pequeno distante e mais mulheres que nada lhe dizem. Pela primeira vez, noto-lhe na voz a amargura. Há uma distância entre o Zé Carlos que parou o carro em frente à estação de Fátima e este que me conta a vida que afinal é a vida que podia ser de qualquer um. O mais curioso, porém, é como a velocidade vai diminuindo. Quando chegamos a Fátima, já o Zé Carlos conduz calmamente pelas ruas, como se as palavras aliviassem o peso sobre o acelerador. Leva-me até uma pensão que conhece e que me garante ser limpa e barata. Agradece-me a conversa ao mesmo tempo que lhe agradeço a boleia. Olho bem para ele quando me despeço, finalmente chegado ao meu destino. O tempo que passou na peripécia do percurso e agora este homem que me diz obrigado quando sou quem lhe está agradecido. Há coisas que são fáceis de ver antes de chegar a um santuário.
1 comentário:
As pessoas revelam-se inesperadamente e conduzir um carro ajuda-nos a contar os nossos sentimentos. Tantas vezes...
Bela peregrinação.
Teresa
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