A casa do Cruz ficava a duas ruas da minha. Mesmo ao lado da junta de freguesia, ali ao largo do rossio, a poucos metros da igreja velha. Ao centro da vila, portanto. Ia lá todos os dias, todas as manhãs, todas as vezes que podia, todas as vezes que a rua e praia não nos chamavam para nos levar mais longe na imaginação da infância. As tardes passávamo-las pedalando por entre canas e caminhos de terra, quando a aventura não nos levava até ao outro lado do rio.
(do outro lado do rio está uma casa cor-de-rosa. Ainda lá está e ninguém sabe muito bem de onde veio ou quem por lá morou. Fica só, a casa, por cima do outro lado do rio, de frente para a foz onde o mar se abandona.)
Éramos amigos pois, eu e o Cruz a crescermos juntos sem saber que crescíamos. Éramos crianças e o Cruz tinha uma madrinha. Senhora de cabelo branco e ar austero, saía ao princípio da manhã para ir à igreja, depois à praça, o passo curto não adivinhava a sua autoridade.
(sempre de cabelo branco. Conheço o Cruz há trinta anos e a madrinha de cabelo branco.)
Deu-se o caso de a porta da casa do Cruz ser feita de ferro e de vidro. Um vidro grosso e fosco, daqueles que deixam ver formas sem que lhes possamos adivinhar a identidade. O Cruz queria fechar, eu queria abrir. Ou talvez o contrário (nestas coisas de brincadeiras de rapazes não há inocentes). Alguém cede, alguém não aguenta, alguém resolve que é tempo de parar. Dois rapazes confrontando a força no intermédio de uma porta. Um deles, o que está mais perto da saída, recua um, dois passos. O suficiente. A porta bate com um estrondo de trovões, o ferro chiando como um cão maltratado. Vidro. Milhares de cacos a meus pés, aos pés do Cruz, ele e eu entreolhando-nos por entre o ferro e a ruína. Os dois em silêncios simultâneos que adivinham pensamentos. Quanto tempo até que a madrinha volte? Quanto tempo até que a minha avó descubra?
(a minha avó não tinha cabelos brancos. Não precisava deles para fazer de mim neto no temor de ser criança.)
É desta, pensamos. Acabaram as brincadeiras, acabaram as férias, acabou o Verão, acabou a vida. Eu e o Cruz entreolhando-nos por entre o ferro e a ruína, a sentir o coração estacar, a pedir perdão por todos os pecados do mundo.
(eu juro, vó, eu juro que vou ser bom outra vez. Por favor deixa-me ir dar mergulhos do cais, eu prometo que jogo contigo à bisca dos nove todas as noites daqui até ao sempre que tu quiseres.)
E a madrinha ao fundo da rua. Já lá vem, já a vimos. O vidro que não é vidro, antes ruína aos nossos pés, o prenúncio do castigo depois do crime. E se colássemos isto com fita-cola? E se nos fingíssemos desmaiados? E se morrêssemos e fugíssemos para a igreja?
O cabelo branco reflecte o sol, um ponto diamante no horizonte imediato. Não há rossio, não há junta de freguesia, não há mais nada a não ser a madrinha. Se ao menos pudesse encher o peito e ser homem já. Respirar fundo e enfrentar a tragédia eminente. Se ao menos pudesse voltar atrás no tempo e colar o vidro com as minhas mãos de homem sem medo.
(a minha avó arruma o baralho de cartas. Vai lá para o cais. Não venhas tarde.)
3 comentários:
Lembro-me bem da mística casa cor-de-rosa. Que memória bonita tens da idade da inocencia.Andas saudosista?
Quem dera que pudéssemos voltar atrás no tempo, colar uns vidros, dar um abraço que nao se deu,dizer 'amo-te' a quem nunca se disse... Mas a única forma de contrariar a fugacidade do tempo, é mesmo viver o presente com intensidade.
Um abraço apertado ao homem da minha vida :)
V.
Parabéns.Seu blog é muito bom,assim como os contos.Um abraço desde o Brasil.james
Será tarde demais ser menino outra vez?
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