Começa o regresso. Chego à estação de Braga ao início da tarde. Tenho a sensação que vivi um romance de Verão, que me despeço agora mas com aquela esperança de que nos voltaremos a encontrar. Há cidades assim, que nos tocam e não sabemos explicar muito bem porquê, lugares onde chegamos e de onde saímos a pensar que talvez pudéssemos viver aqui, que talvez gostássemos e quiséssemos que esta fosse a nossa cidade. Por mim, saio a fazer contas aos quilómetros que separam Braga de Lisboa. Quanto tempo para aqui chegar? Quanto tempo para aqui voltar?
O comboio sai da estação e eu sei que começou o fim desta viagem. Mas mais que isso, sei que a viagem ainda não acabou. O comboio sai da estação e uma hora depois, voltam os imprevistos. Porto, estação de Campanhã. “Senhores passageiros, devido a avaria, teremos de trocar para o comboio que dará entrada na linha número 9, ao lado desta composição. Pode um raio cair duas vezes no mesmo lugar? Pelos vistos pode. Depois da linha do Minho, repete-se o filme. São outra vez duas da tarde e a única diferença talvez seja que o calor abrandou. Mais que isso, não se repete o tempo de espera. Desta vez passa praticamente uma hora até que o outro comboio chegue e a viagem retome o seu curso. Ainda assim, sorrio baixinho a pensar que esta foi afinal a primeira estação de destino quando esta viagem começou, é justo que tenha de sair aqui quando inicio o regresso.
Rápido, o comboio alfa leva menos de uma hora a chegar a Coimbra. Com o atraso, não tenho de esperar muito até que apareça o outro alfa, vindo de Lisboa. Ao fundo da gare, R. sai de mala azul na mão e a sua maravilha própria de ser. Dou-me conta que não faço a barba há uma semana e que esta roupa que trago no corpo é a última roupa limpa que tenho. Mas não importa. R. é um sorriso só e eu sei que esta deixou de ser a minha viagem, que já não é mais da minha terra que trata a jornada. Daqui em diante seremos nós e terra que também é nossa. O encontro é um romance de Verão e eu sei que começou o fim desta viagem. Mas mais que isso, sei que a viagem ainda agora começou.
A viagem de Viana do Castelo a Braga é uma hora e meia tranquila. Deve ser a calma antes da tempestade. É preciso percorrer a pé duas ruas inteiras para chegar ao centro, mas uma vez lá chegado, parece que toda a gente está a passar por aqui. Braga é uma explosão de gente, uma surpresa de movimento constante que apaixona. Com excepção para Lisboa e Porto, Braga parece-me a cidade mais europeia e cosmopolita da minha terra. Não são os edifícios históricos, nem o nítido desenvolvimento que a cidade sofreu e sofre ainda. Mais que tudo, são as pessoas. Há gente a caminhar para todos os lados, esplanadas e cafés cheios, um vai e vem que (a minha terra que me perdoe) me faz lembrar o melhor que têm os nuestros hermanos aqui mesmo ao lado. Não é difícil perceber porquê.
Escrevam “cidade portuguesa com mais população jovem” no motor de pesquisa Google e vejam qual é o único resultado concreto que aparece. Lendo um pouco mais, descobre-se que sim, Braga foi há pouco mais de duas décadas considerada a cidade mais jovem da Europa, sendo que nos últimos anos a população da cidade cresceu 25 por cento. Isso nota-se e nota-se bem. São duas da tarde de um dia de semana e as ruas não param. Mas o melhor é que o centro, ao contrário, por exemplo da minha capital, não morre depois das sete ou das oito. Pelo contrário, continua a respirar cada vez mais vida. Pelas ruas, há flores e cachecóis do clube de futebol local, com razão um dos maiores orgulhos da cidade, e que ainda antes de ontem venceu por 3-0 o vice campeão da Escócia. O calor vai apertando, mas ninguém parece desistir de dar vida a este lugar.
Depois do descanso do calor, acabo por me sentar na esplanada do Café Vianna, o principal café da cidade e pelos vistos também o mais antigo. De frente, está uma fonte gigantesca que refresca o ar e dá mais cor à cerveja que se bebe entre conversas em todas as línguas. Fico a olhar para tudo isto como quem olha para uma rapariga bonita que se acaba de conhecer e por quem já sabemos que nos vamos apaixonar.
Entre sombras misteriosas
em rompendo ao longe estrelas
trocaremos nossas rosas
para depois esquecê-las
Se o meu sangue não me engana
como engana a fantasia
havemos de ir a Viana
ó meu amor de algum dia
ó meu amor de algum dia
havemos de ir a Viana
se o meu sangue não me engana
havemos de ir a Viana
Partamos de flor ao peito
que o amor é como o vento
quem pára perde-lhe o jeito
e morre a todo o momento
Ciganos verdes ciganos
deixai-me com esta crença
os pecados têm vinte anos
os remorsos têm oitenta
Há dias assim. Todas as viagens têm dias assim. Dias em que os planos saem furados, em que apanhamos comboios para sítios errados, não porque o comboio esteja enganado, mas porque há algo de errado com os sítios. Dias em que falhamos o planeamento dos horários e damos por nós em esperas infindáveis por coisa nenhuma em lugar nenhum, dias que nos doem nas pernas por andarmos demais e por sabermos que podíamos ter andado menos. Dias assim são um exercício à alma de viajante. É nestes dias que sabemos se estamos aptos a deixar fluir a ordem natural das coisas, a aceitar que o que a viagem nos traz é aquilo que tem mesmo de nos trazer. É que dizer que se viaja ao sabor da corrente, na perfeição de cada momento, é muito mais fácil quando a viagem corre bem. O verdadeiro teste é quando corre mal, ou pelo menos quando não corre da forma que seria mais fácil. Vejamos.
O dia começa cedo. Depois do pequeno-almoço a sós com a televisão apagada da Pensão Petisqueira, deixo a cidade-berço a caminho da estação. Quero apanhar o comboio que sai perto das dez e me leva até Lousado, onde deverei chegar pouco mais de meia hora depois. Aí, terei de trocar para novo comboio que me deixará em Nine, onde apanharei finalmente a linha do Minho que me levará até Valença, no limite da minha terra. Foi este o percurso que estudei e que, apesar das trocas, me fará esperar menos, sendo que as trocas acabam por atenuar as esperas, já que enquanto um comboio vai e vem é menos tempo passado em gares que se chamam Lousado e Nine. Chegado à bilheteira, peço então o bilhete para todo o percurso. O senhor por trás do vidro tem, no entanto, uma alternativa melhor. “Não é preciso tanta troca amigo. Vai daqui direito à Trofa e de lá apanha logo a linha do Minho para Valença.” Ena, parece que afinal a internet não supera o engenho humano. O percurso estudado no site da CP dava mais trocas e estações que este senhor por trás do vidro. Muito bem, respondo, mas assim quanto tempo espero na Trofa? “Hora e meia. Dá por lá uma volta e vai à sua vida.” Penso: hora e meia de espera não custa muito, é tempo que aproveito para preparar, sei lá, o próximo post do blog. Aceito e vinte minutos depois estou a caminho.
Quarenta e cinco minutos depois, chego à Trofa, pronto a procurar um café onde possa comer qualquer coisa e passar a hora e meia que me falta. Mas nada feito. Sem preciosismos de qualquer espécie, e com perdão das gentes de semelhante lugar, a Trofa é horrível. Uma estação donde se vê uma igreja emparedada por prédios a fazerem lembrar os subúrbios da Checoslováquia dos anos 70 e um bar na estação onde as águas supostamente frescas estão guardadas dentro de um alguidar com água morna. Demora-me dois minutos a perceber que não vou ficar aqui nem cinco. Decido então seguir para Ermesinde, por onde passei ontem e esperei calmamente num café simpático de frente para uma praça espaçosa. É o que faço, mas isto custa-me quase mais três euros e meia hora a andar de um lado para o outro. De regresso à Trofa, lá apanho finalmente o comboio para Valença. Desta é que é, digo de mim para mim, o estômago a sonhar com o almoço de frente para nuestros hermanos do outro lado da fronteira.
A viagem para Valença corre sem problemas até ao momento em que um estrondo abala o sossego dos passageiros. O vidro de uma das portas é atingido por qualquer coisa arremessada de fora e estilhaça-se em centenas de bocadinhos. A viagem continua, mas quando estamos perto de chegar a Caminha, o revisor irrompe pela carruagem em voz alta: “Meus senhores e minhas senhoras, vamos todos trocar de composição na próxima estação.” Não vale a pena protestar que este comboio era directo e que toda a gente aqui comprou bilhete para ir directo. De Caminha, este comboio não passa. Lá chegados, saio para a gare que estala de calor. São quase duas da tarde e do ar fresco que podia vir do mar próximo nem sinal. Pacientes, todos os passageiros percorrem a pé a distância que nos separa da composição seguinte. Demora quase mais meia hora a partir. Vale que nesta parte da viagem, o mar aparece nas janelas e inunda as vistas com a calma própria das grandes paisagens. Nisto, porém, uma mulher atrás de mim chora ao telefone. “Parecia que Deus adivinhava, mãe. Ainda ontem a fui visitar e hoje a Mafalda telefona-me de manhã. Ó prima, a minha mãe morreu. E eu naquela aflição. Ai Jesus, mãe…” Dois bancos à minha frente, a juventude vai indiferente a caminho do festival de Paredes de Coura. Eu, no meio, dou conta das ironias neste dia de tragédias e comédias.
São quase três da tarde quando o comboio chega por fim a Valença. O que me espera do lado de fora da estação é, no mínimo, inesperado. Apesar de uma avenida simpática, o resto são prédios e mais prédios, dois deles as únicas residenciais perto do centro. Fico a pensar para onde foi o planeamento urbano da minha terra enquanto como finalmente qualquer coisa numa esplanada feita de sombras. Apesar do cansaço, percebo que não vale a pena ficar aqui. A minha terra tem destas coisas, lugares que são o retrato de um país pequeno. Volto à estação. Faltam quinze minutos para o comboio partir de volta. Acabo por decidir, como o poeta, voltar a Viana. A tarde já vai para lá de meio quando vejo o mar ao fundo da avenida. Doem-me os pés, as costas e as pernas, mas sorrio com o deslumbre do azul. Já percebi para que foi isto tudo. Foi para chegar aqui.
Consta que foi aqui. Não sei se foi, há até fontes que dizem que não foi, mas isso não parece importar muito aos cidadãos locais. Guimarães é o “berço da nacionalidade”, o lugar onde nasceu e cresceu e viveu o primeiro rei de Portugal. O resto são pormenores literários, coisas para entendidos discutirem em livros e artigos da especialidade. Tudo o mais é orientado em função deste “facto”. Tudo, desde a estátua que fronteia o castelo até ao emblema do principal clube de futebol local. Nesta viagem, Guimarães acontece ao princípio da tarde, já o dia vai longo desde a madrugada do Pocinho e do Douro de ouro. Curiosamente, ou talvez não, ao sair da estação, a primeira avenida que percorro a pé em direcção ao centro é a Avenida D. Afonso Henriques. A avenida desemboca no largo principal às portas do centro histórico, onde a muralha mais famosa de Portugal faz a sua aparição para sempre fotográfica. Mais que isso, o que me chama a atenção é o ambiente de celebração que se vive, as ruas decoradas numa antecipação de festa. Percebo pouco depois que estão prestes a começar as “festas gualterianas”, uma festividade em honra do santo padroeiro da cidade.
Imbuído de espírito lusitano, viro à esquerda e entro na Rua de Camões, onde está a Pensão Petisqueira, o lugar de pernoita. Toco a campainha e passa algum tempo até que a dona da pensão me venha atender. À minha frente está uma porta automática que a senhora puxa com todas as suas forças, colocando as duas mãos sobre os vidros. Faz-me um sorriso vagamente simpático e convida-me a entrar para uma sala escura onde não está uma única pessoa. As luzes apagadas reforçam o efeito das portadas completamente fechadas, dando um ar no mínimo sinistro a este lugar. Mas o quarto é confortável e fresco, além de barato, pelo que aceito ficar. Mais tarde, virei a descobrir que sou na verdade o único hóspede, tomando o pequeno-almoço em silêncio de frente para uma televisão presa no tecto. Isso, porém, será mais tarde. Para já, desço de novo para a rua à procura de um lugar onde dar descanso ao estômago, já sofrido pelas mais de seis horas de viagem que leva por hoje. Ao sair, a senhora pede-me o favor: “Se voltar a entrar e a sair, bata-me com a porta.” Fico a olhar num instante de silêncio estarrecido. Faço o quê? Bato-lhe com a porta? Dou-lhe com ela na cabeça? Arranco-a das dobradiças ou simplesmente ponho a senhora a jeito de uma valente entaladela. Vale-me a linguagem dos gestos, os braços da senhora que me indicam que afinal o que me é pedido é que feche a porta no trinco.
Aliviado, volto ao largo onde está a Cervejaria Martins, um balcão corrido onde servem bitoques e acepipes (uma espécie de tapas) bem regados com cerveja gelada. No tecto, encontro cachecóis de pelo menos metade das equipas de futebol nacionais a par com outras tantas internacionais.
Gosto do ambiente e deixo-me ficar, apanhando conversas e descansando o corpo e a garganta. Numa das paredes, um azulejo escrito em castelhano prende-me a atenção e o sorriso: “La buena vida es cara; la hay más barata, pero no es vida”.