Eugénia discute com o marido. Discutem todos os dias, mesmo antes de fazerem amor. Todos os dias os gritos e impropérios, as promessas de se desamarem para sempre. E depois o suor, o gosto do peito e a certeza de que ainda não é desta que a vida se acaba. Não se lembram se foram sempre assim, nem se recordam de algum dia terem sido diferentes. Ela, de avental e depois da praça e do peixe; ele, de camisa aberta até ao umbigo e calças enroladas por cima dos joelhos, a boca que cheira a rede e a lodo. E todos os dias, Eugénia esperando o marido, António Manuel Charrinho, Tó Fateixa para os companheiros de mar alto.
(certa vez, dizem, certa vez ficou de pé preso na fateixa e foi ao fundo com o ferro em plena tempestade na barra. Esteve oito minutos debaixo de água antes de voltar à superfície, o corpo quase exangue e o peito respirando a custo. Ninguém, nem o Tó Fateixa, sabe como foi que se soltou da morte. Dizem que foi um anjo.)
Só que hoje Eugénia não foi para a praça. Está farta de enganos. Casou fez anteontem vinte anos. Dezanove anos, portanto, tinha Eugénia quando se deixou prender de amores por um homem seis anos mais velho, a pele então como hoje feita em rugas pelo sol e pelo sal da maré vaza. Eugénia contra a vontade do pai e das irmãs e hoje a pensar porquê. Hoje pensa que há-de vingar-se.
(a brasileira, a galdéria de perna feita a ver se fila os homens junto às redes do cais, mesmo à saída das traineiras que voltam da faina.)
Eugénia aqui. Tó Fateixa subindo a rua, a casa quieta em prenúncio de desgraça. Sentem os dois o cheiro do mar que se agarra ao vento da manhã. Eugénia aqui. Sabe que o coração já não é só seu. Não é só seu o corpo que vem subindo a rua, o cambalear ligeiro do vinho que se mistura com o gosto das redes e do lodo. À espera, junto à porta de ferro e vidro grosso, Eugénia encostada na porta capaz de esconder segredos. Porta aberta aguardando a chegada da vingança.
Eugénia ouve-lhe os passos, primeiro, depois a respiração e o cheiro do perfume barato escondido pelo suor do mar. Tó Fateixa encosta a mão na parede da casa e sente-a quente, o branco da cal lembrando o dia passado longe da terra. Vê a porta e pára antes do primeiro passo. Estranha a porta assim, escancarada madrugada adentro, um convite à maldade dos homens.
(onde está a mulher? Mulher, onde estás?)
Mas a casa quieta, um sossego de silêncio preso nas redes e no lodo. Tó Fateixa é homem de mar, conhece a calma antes da tempestade, este silêncio que lhe aguça os sentidos. Só que Tó Fateixa não quer acreditar. Esta é a sua casa, o seu lugar, a mulher que é também sua, a dona do coração sem corpo. Vai devagar, mas quando dá o passo que o traz dentro da casa
(a sua casa. Lembra-se da noite primeira, o casamento e o cheiro de Eugénia a redes e conchas e nesse instante talvez Tó tenha dito de si para si talvez seja isto o amor.)
quando dá o passo que o traz dentro da casa é tarde demais. A porta já não tem segredos, corre para ele com um estrondo. O vidro e o ferro invadem-lhe a pele numa desilusão de sentidos. Tó Fateixa ainda vai a tempo de escutar a gargalhada de Eugénia que chora.
(filha da puta, que me matas!)
Lá fora é madrugada ainda e é ainda o silêncio. Mas Eugénia só coração.