Para chegar à praia, caminhos de terra, o carro aos saltos, depois a pé, depois descer por uma corda. E então o areal e as rochas que entrecortam o areal. A areia molhada tem o tamanho de um estádio, se a maré está cheia, o tamanho de uma agulha, se estiver vazia. É a praia que só é praia metade do dia ou metade da noite. Por dentro da areia está a minha casa. À volta tem-se o mar e tem-se o Alentejo. A areia revolve-se não com as ondas mas com os passos. Gritos e gargalhadas, as primas a discutir, os tios a explicarem, as tias a lerem romances, os sobrinhos a ver se percebem, os pais a dormirem, a avó na sombra do chapéu tricotando. É Verão e às vezes começamos todos a caminhar. Vamos junto à espuma fina que nos beija os pés, serpenteando rochas, falando do passado e do futuro.
(o biquini que lhe roça as coxas, escarlate como o meu rosto quando de mim se aproxima. É Verão, mas o frio que sinto na barriga enregela-me os movimentos. Os lábios têm o gosto do sal fresco e quando me encontram já eu me perdi. O coração não bate, é antes o corpo inteiro que se agita e se palpita como um fim eminente. A cor do sol é tudo quanto consigo ver e mesmo assim só de olhos fechados.)
Caminhamos. Nunca a direito, quase sempre detendo-nos perante uma ideia, uma respiração, um nada qualquer que nos lembre que o tempo por aqui não passa. O tempo revolvendo a areia debaixo da qual está a minha casa.
(de olhos fechados somos livres. Temo-nos a nós e ao que em nós se compõe, as coisas maiores que às vezes nem por palavras se explicam. A areia tem lá dentro as vozes que se juntam num cantar de coro e de força. A totalidade.)
(a cor do sol estala no corpo antes de cair sobre o mar. Apenas respiração, o ar exangue.)
O tempo não passa antes que o dia termine, antes que a avó se levante e recolha as malhas na alcova, antes do pai arrancar da areia a sombra que se espalha pelas nuvens. Mais gargalhadas e gritos de protesto. Porque não ficamos aqui até ao fim do Verão? Porque é que o Verão não fica até que nós fiquemos?
No céu, não se vêem os aviões, mas o seu rasto. Finas linhas brancas como a espuma das ondas. As linhas do destino e dos sonhos de lugares longínquos. Todas as viagens passam por cima do Alentejo.
3 comentários:
HUM!! Coincidência INTERIOR de fazer a vontade ao desejo.
Ora aí está, um excelente texto que não nos deixa indiferentes.
Terminei de ler com vontade de correr para lá! Sabemos que o autor é do tipo de se fazer à estrada, encher a vida com estas vivências, e sentir o calor da alma alentejana.
p.s.: É um abuso deixar os leitores com água das migas na boca.
parabens pelo texto e pela frase do título que não nos larga como uma infância perdida
Sim, o título é grande, mas gigantesca, de cortar a respiração, é a última frase. Ai, as viagens...
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