Saio de casa para mais uma rotina. Subo a rua em direcção ao Pátio de Belém, o café de esplanada sobre o Tejo que visito pelo menos duas vezes por dia todos os dias. Vou tantas vezes que o Pátio de Belém para mim já não é Pátio de Belém, é antes o nome do seu patrono principal. O senhor Peixoto é homem de simpatias e de calorosas boas vindas. É homem de trabalho. Bata creme à cintura, a cabeça calva e os óculos pretos que lhe dão um ar de patrão. O senhor Peixoto é a porta e as paredes, é os quadros de Luanda espalhados na vista de quem passa e se senta nas mesas de tampo negro. Tanto que quando se lá vai, não se vai “lá”. Vai-se ao senhor Peixoto. Como se vai a casa de um amigo que conhecemos ontem como se conhecêssemos toda a vida.
Lá dentro, o cheiro a café, a bolos e a ar quente dão ao lugar uma ternura de décadas que ainda não possui. Do lado de fora, a esplanada derrama a vista sobre o encanto de Lisboa, os Jerónimos e a outra banda cercando o rio que passa de fininho na calma da tarde. Quando entro, não preciso de falar. O café em cima do balcão é mais rápido que os meus bons dias. Seja quem for junto à máquina, todos conhecem o meu hábito, a minha rotina, o meu gosto. Hoje é o senhor Peixoto – ele mesmo – quem faz as honras. Pergunta-me se estou bem disposto, respondo que sim num cliché qualquer, mas o senhor Peixoto não enseja a oportunidade de dois dedos de conversa. Depois do seu cafezinho ainda vai ficar melhor. E vai daí é claro, respondo, sem este café não passo eu.
O senhor Peixoto afiança que é o melhor do bairro, o melhor de Belém. Digo-lhe concerteza, o melhor de Belém e arredores. Responde-me se é dos arredores é de Lisboa, é do universo inteiro. Ora bem, já filosofamos e tudo. Brinque à vontade, café deste não encontra você por aí. Eu explico-lhe. Fique sabendo que cá o da casa é de qualidade, o mesmo lote mas variedades distintas. A máquina lava-se duas vezes por mês, mas o segredo está na moagem. Nem muito moído nem moído de menos. Porquê? Se muito, empapa, a água não passa, não faz espuma; se pouco, a água passa depressa demais, o café não ganha sabor. Ora veja por si mesmo – à minha frente, um pires com dois gramas de café que me convida a saborear com os dedos. Além disto, temos o lote, que tem arábico, tem robusto africano e tem do vulgar que nem interessa de onde é. Quer ver? Pois faça favor – outro pires, agora cheio de grãos negros de vários tamanhos. Está a ver estes maiores? São do arábico, isto é o que dá aroma e sabor. Estes aqui pequenos e grossos são do robusto africano, é o que lhe dá corpo, os outros aí mais pequenos, aqui para nós, é só para dar acidez e fazer número.
Saboreio a chávena enquanto o senhor Peixoto me explica tudo isto. Juro a mim mesmo que o café nunca mais me há-de saber igual.
Um homem de gabardina e cabelo grisalho toca o balcão ao meu lado. Vem de cachecol enrolado e um ar de quem também faz deste lugar um refúgio de rotinas. Pede um descafeinado. – Descafeinado? E já agora sabe como se faz um descafeinado? Não, senhor Peixoto, não sei, mas tenho a certeza que me há-de explicar. Lavam-se os grãos com vapor, só isso, não mais que isso. Se não sabia, fique sabendo que o descafeinado tem cafeína. Tem menos, mas não julgue que é com vapor que se tira a cafeína toda de um grão.
(como o homem, não importa quantas vezes a vida o lave por fora, ele há-de ser sempre o que é por dentro.)
A chávena chega ao fim. Estou rendido. Penso como pode alguém julgar que este ofício não tem ciência, como pode alguém ensinar-me tanto em tão pouco tempo e quem há-de avaliar a relevância de um conhecimento. Agradeço ao senhor Peixoto a lição. Saí de casa há vinte minutos, volto vinte minutos mais rico. O senhor Peixoto agradece com a frase de sempre. O prazer foi nosso, estamos juntos.
Pode crer que estamos, senhor Peixoto. Pode crer.