quinta-feira, novembro 30

Madrugada




Há um lugar onde se chega
um tempo que sem dor termina
o fim de um caminho
o amor chorando outra vez pela vida

Há quem se acolha ao entardecer
quem ao longe veja no escuro
antes da ausência e do medo
a viagem certa para a casa do futuro

Há corações que nascem para viver
um tempo que no amor começa
o sol erguendo-se pela força da música
esplendor de uma voz aberta

Há quem ensurdeça os silêncios
quem com um beijo de vida afaste os mortos
quem para sempre para sempre lembre
a madrugada esquecida no abraço dos corpos
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quarta-feira, novembro 29

¿Quién decide?



Shouting, William Blake


"¿Quién decide quién está loco y quién no? O lo que es más difícil, ¿cómo saber quién está loco y quién no? Yo siempre he pensado que la locura es, más que una condición clínica, un término legal. En los manicomios es fácil saber. ¿Trae bata blanca? No está loco. No trae bata blanca: está loco. Trae bata blanca pero abrochada por detrás: está loco. No trae bata pero trae una jeringa: no está loco. Trae una jeringa y un chingo de raza corriendo detrás de él: está loco. Trae corbata: es el administrador. Pero fuera del manicomio es más difícil establecer criterios. Es decir, si uno ve a un tipo de barbas largas, desaliñado, sucio, predicando el fin del mundo, uno puede decir “está loco”. Un amigo, cuando ve a alguien así, dice “ese güey le va a los Pumas”. Si alguien ve a un pordiosero hablando con una cajita de cartón, instantáneamente piensa “mira, un pobre loquito”. Mi amigo diría “ese güey le va a los Pumas”. Una vez íbamos caminando por un parque donde jugaban niños, y había un tipo desnudo con una gabardina enseñando sus miserias. Cualquiera hubiera pensado “maldito pervertido, loco de mierda”. El tipo se puso frente a nosotros y abrió su gabardina. Yo inevitablemente miré hacia otro lado, pero mi amigo me dijo “¿ya viste qué chiquita la tiene?… de seguro juega en los Pumas”. (Pausa breve) Cuando digo que la locura es un término legal, es porque hay que estar legalmente loco para que a uno lo encierren. Mientras tanto sólo estamos enfermos. ¿Qué es lo que separa a Hugo Chávez de la locura? La silla presidencial. ¿Qué es lo que separa a George Bush de la locura? La silla presidencial. ¿Qué es lo que separa a nuestro honorable Congreso de la Unión de la locura? (Pausa) No, es en serio, les pregunto porque realmente no lo sé. (Pausa breve) La locura es una cuestión de consenso. Es decir, un tipo barbudo hace desmanes en la vía pública mientras grita que él es Dios. Unos cabrones en batas blancas se ponen de acuerdo y dicen “ese güey está loco”. Firman unos papeles y listo, el tipo está legalmente loco. Por otro lado, otros cabrones en túnicas ven al mismo tipo, se ponen de acuerdo y dicen “sí, ese güey es Dios”. Escriben un libro y ¡pum! el bato ya es Dios. Llegan otros cabrones pero en traje, lo ven, se miran, ven cómo la gente le presta atención y lo rodean para ver qué está haciendo, se vuelven a mirar entre sí, hasta que uno dice “¿y si lo lanzamos como nuestro candidato?” Así las realidades se van concensando. La única variable de la historia es que unos llevan batas, los otros túnicas y los últimos trajes. Así que todo depende de quién te mire para saber si eres Dios, un loco o un loco con suerte… ¿Dios existe? Claro, porque un montón de personas se puso de acuerdo, y –aunque jamás lo hayan visto– aseguran que es así. Por ejemplo, usted y yo, a ninguno de nosotros nos conocen en Tailandia, ¿cierto? Pero qué tal si a un tailandés le preguntan si conoce a Mickey Mouse. De seguro le va a responde que sí. Entonces Mickey Mouse es más real que usted y yo. A veces, cuando pienso en esto, me deprime darme cuenta que el Chupacabras existe más que yo… Como les dije, la realidad funciona como una democracia. Pero esto no necesariamente quiere decir que la democracia funcione en la realidad. (Pausa) Si lo piensan bien, los esquizofrénicos somos afortunados. Nunca estamos solos. Siempre estamos viendo cosas, oyendo voces… los que tiene personalidad múltiple no tienen que estar esperando a que los inviten a una fiesta, ellos solitos se dan abasto. La única bronca es cuando tienen que ponerse de acuerdo sobre quién va a ir por la cheves."


in El Hombre Sin Adjetivos, Mario Cantú Toscano
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sexta-feira, novembro 24

Liberdade

Gostava de sentir a liberdade absoluta. Gostava de viver ao sabor de um passo, ignorar os ponteiros do tempo e contar apenas a luz do dia e as estrelas na noite. Ser livre, percorrer a pé as praias mais longas do mundo, cheirar o mar até ao fundo mais remoto.
Queria beijar toda a beleza que já vislumbrei, abraçar a vida como se abraça um amigo.
Queria cair na vertigem da estrada que não leva a lugar algum e chegar a esse eterno nada.
Gostava de lavar o coração com todas as lágrimas que nunca chorei para que o sangue fosse tão puro como quando era criança. Queria ser outra vez criança, visitar a infância e ver a frescura dos olhos de minha mãe, escutar a gargalhada solta de meu pai, brincar com o meu irmão, os dois perdidos nesse amor mais simples que é o amor entre crianças.
Gostava de voar ao entardecer, ofuscado por crepúsculos incandescentes, a respiração suspensa pelo beijo da Natureza, o olhar preso de espanto na grandeza do mundo.
Queria escrever as palavras certas para descrever o amor, a vida, a morte e a transcendência do Homem, escrevinhar nas paredes das casas os meus poemas favoritos, partilhar com toda a gente o fervor das emoções que se escondem na explosão de um verso.
Gostava de ser absolutamente livre, de amar quando e onde quisesse.
Queria libertar o corpo ao vento e nunca sair de casa, beber a água nas fontes das montanhas e escutar o silêncio que para sempre se afunda no horizonte.
Gostava de fechar os olhos e apenas sentir, sentir a brisa da vida que para sempre em mim se transforma.

quarta-feira, novembro 22

Claridade

Jorge Luís Borges: (…) reflecti que todas as coisas sucedem a uma pessoa precisamente agora. Passam séculos e séculos e só no presente acontecem os factos; há inúmeros homens no ar, na terra e no mar, e tudo o que realmente sucede, sucede-me a mim…

Podemos pensar que a vida se agita constantemente aos nossos olhos; podemos acreditar que bebemos a existência plena pela taça da experiência enquanto saboreamos o doce bolo do conhecimento; podemos julgar que já vimos no mínimo metade do que há para ver e que o nosso saber é sólido como as raízes mais fundas; que embora esse saber possa sofrer transformações e contestações jamais será alterado na sua essência; podemos por exemplo saber que o tempo tem dias e tem noites, que os dias são normalmente claros e que as noites primam pela escuridão, que a escuridão só pode ser concebida na ausência da luz e que só a luz pode anular qualquer resquício dessa escuridão. Sabemos isto e muito mais e pensamos, ou melhor, não pensamos, que os limites do nosso mundo comportam também eles os limites do nosso entendimento.
E depois basta um instante. Um homem senta-se à nossa frente com a face meio comida pelo tempo e percebemos que não vivemos nada. Assalta-nos a evidência de que o mundo, esse sim, é vasto e da nossa vida não reza a sua história ininterrupta. Fica-nos a impressão de que não somos mais que uma fracção, que algures o grande relógio se soltou e se fez a história que continuará mesmo para além de toda a nossa transcendência. Percebemos tudo isto só com a presença de um velho? Sim. Porque não podemos fugir à óbvia diferença que entre nós subsiste e que nos mostra a distância que nos separa dos homens que também somos.

segunda-feira, novembro 13

Diários da Índia 9

The essence of beauty


Ladakh, Himalayas

"You know when you see something like a marvellous mountain against the blue sky, the vivid, bright, clear, unpolluted snow, the majesty of it drives all your thoughts, your concerns, your problems away. Have you noticed that? You say, ‘How beautiful it is’, and for two seconds perhaps, or for even a minute, you are absolutely silent. The grandeur of it drives away for that second the pettiness of ourselves. So that immensity has taken us over. Like a child occupied with an intricate toy for an hour; he won’t talk, he won’t make any noise, he is completely absorbed in that. The toy has absorbed him. So the mountain absorbs and therefore for the second, or the minute, you are absolutely quiet, which means there is no self. Now, without being absorbed by something – either a toy, a mountain, a face, or an idea – to be completely the me in oneself, is the essence of beauty."

in On Love and Loneliness, Jiddu Krishnamurti
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sexta-feira, novembro 3

A Fácil Felicidade

Most lives vanish. A person dies, and little by little all traces of that life disappear.
in The Brooklyn Follies, Paul Auster


Não vás por aí. Tenta ir com a maré, dar a volta por cima, mas não aceites merda de ninguém. Mantém a cabeça erguida. Leva a bicicleta tanto pelas montanhas como pelas planícies. Sonha com aquele corpo nu e perfeito, aquela pele lisa e dourada. Toma todos e só todos os remédios que tiveres de tomar. Vota sempre na Esquerda em todas as eleições. Bebe muita água durante o dia. Puxa pelo Sporting, vai ver um jogo ao estádio de vez em quando. Vê muitos filmes, lê ainda mais livros, escreve o que conseguires. Ouve a música. Não trabalhes demasiado, não te esforces mais do que a conta no teu emprego. Vai a Londres, a Paris, a Nova Iorque, sente África pelo menos uma vez e não te esqueças que o mundo é imensamente maior que tu. Vai até ao hospital quando o teu filho estiver a nascer, segura-o bem nos braços e inclina-te com um beijo perante a mulher que amas. Lava os dentes a seguir a todas as refeições. Não atravesses a rua quando o sinal está vermelho. Defende o fraco e o oprimido. Mantém o respeito por ti e pelos outros. Lembra-te de todas as pessoas lindas que existem e de que és uma delas. Lembra-te de que amas e de que és amado também. Bebe um copo com os amigos de vez em quando. Não fales demasiado a sério. Respira fundo. Faz amor e dá, faz amor e recebe, sempre pela mesma ordem. Mantém os olhos bem abertos. Alimenta-te como deve ser. Dorme o sono dos justos. Vai ver o mar e começa de novo. Lembra-te de que amas e de que és amado também.

segunda-feira, outubro 30

A Dúvida

Como é por dentro outra pessoa
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.

Nada sabemos da alma

Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo.

Fernando Pessoa

quinta-feira, outubro 26

Diários da Índia 8

O que podíamos aprender

Toda a Índia é uma experiência de extremos. Por um lado vê-se o que de acordo com os nossos padrões ocidentais e bem-educados seria considerado abjecto, por outro vamos enriquecendo em tudo o que somos ao virar de cada esquina. Por entre as ruas cheias de excrementos, vacas, cabras, macacos, oportunistas, mafiosos, traficantes de droga e miseráveis pedintes, vamos descobrindo como são frágeis, muito frágeis, as nossas concepções acerca do mundo e da forma como vivemos a vida. Longe do conforto da terra pátria e do mundo dito civilizado, não encontrei ninguém em stress por ir buscar os filhos à escola e depois fazer o jantar, quem não acreditasse num certo optimismo acerca do universo. Não é que sejam mais felizes, ou que sejam menos, não é uma questão de julgar ou saber o que de mais ou a menos tem a Índia em relação ao mundo de onde venho. Trata-se apenas de observar na Índia o que da Índia gostaria que fosse do meu mundo, ao mesmo tempo que entendo o que do meu mundo poderia fazer falta à Índia. Porém, a tudo se deve observar com o olhar atento de quem soma e não de quem divide ou subtrai. Tal como os indianos fazem relativamente às fés e aos credos. É que também não encontrei quem fosse intolerante e cheio de preconceitos em relação a outras religiões e raças. Depois de ter estado com muçulmanos, budistas e hindus, é curioso notar que todos dizem o mesmo: são os políticos que fazem as divisões e as guerras, que não há problema algum com o facto de tu seres uma coisa e eu outra. Na Europa somos tolerantes e julgamo-nos o pico da humanidade sem experimentar o que este povo verdadeiramente experimenta: a comunhão.

terça-feira, outubro 24

The Inexplicable

"In a sense, everything that exists is to climb. All evolution is climbing towards a higher form. Climbing is a metaphor for life as it reaches towards consciousness, towards the spirit. We have always honored the high places because we sense them to be homes of gods. In the mountains there is a promise of... something inexplicable. A higher plane of awareness, a spirit that soars. So we climb. And in the climbing there is more than a metaphor; there is a means of discovery."

segunda-feira, outubro 23

First Things

"First things.
What was in the beginning.
Before ambition, before job, before office, before designation, before byline, before car, before house, before marriage, before need.
Before need, before need, before need…
Purity of the primary. The wholeness at the start.
Love and desire.
Heart and art. She and me.
First things.
It was ironic, for we were now adrift in the country of last things. Where the fruit decays on the branch before it can bloom. Where the falling rain burns all it touches. Where the air sears the lungs with every breath. Where love has no passion and is the mere memory of another time."

in The Alchemy of Desire, Tarun J. Tejpal

quarta-feira, outubro 18

Diários da Índia 7

A Turma


Central Institute of Buddhist Studies, Choglamsar Posted by Picasa

quarta-feira, outubro 11

To remember while in the storm 2

My Way

And now, the end is here
And so I face the final curtain
My friend, I'll say it clear
I'll state my case, of which I'm certain
I've lived a life that's full
I traveled each and ev'ry highway
And more, much more than this,
I did it my way

Regrets, I've had a few
But then again, too few to mention
I did what I had to do
and saw it through without exemption
I planned each charted course,
each careful step along the byway
And more, much more than this,
I did it my way

Yes, there were times, I'm sure you knew
When I bit off more than I could chew
But through it all, when there was doubt
I ate it up and spit it out
I faced it all and I stood tall
and did it my way

I've loved, I've laughed and cried
I've had my fill, my share of losing
And now, as tears subside,
I find it all so amusing
To think I did all that
And may I say, not in a shy way,
"Oh, no, oh, no, not me, I did it my way"

For what is a man, what has he got?
If not himself, then he has naught
To say the things he truly feels
and not the words of one who kneels
The record shows I took the blows
and did it my way!
Yes, it was my way

By Frank Sinatra
Original music by Claude François, Jacques Revaux, Gilles Thibault
Original lyrics by Claude François, Paul Anka, Jacques Revaux, Gilles Thibault

terça-feira, outubro 10

Diários da Índia 6

Where are you from?

Quando se viaja, o mais natural que possa suceder a um viajante é encontrar outros viajantes, é conhecer gentes de outros lugares, é dar de caras com outras culturas e modos de ser. Ao viajar pela Índia, são dadas ao viajante duas oportunidades: conhecer e contactar com as pessoas dos lugares por onde vai passando e, ao mesmo tempo, encontrar e conhecer outros que como ele deixaram o conforto dos seus lares e se resolveram à aventura de deambular pelo segundo país mais populoso do mundo. Todas estas assunções são certeiras, quer se trate da Índia, da Austrália ou do reino da Conchichina. O que é dado curioso e presentemente retratado é a forma como esse conhecimento é travado, o modo como é a feita a abordagem ao viajante entre viajantes.
Ao passear pelas ruas de Delhi, Agra ou Varanasi, o que é assaz frequente de acontecer ao forasteiro é ser sistematicamente bombardeado com questões e solicitações por parte daqueles que, ciosos do seu ofício, buscam a oportunidade de negócio. Então é o festival do costume: “Rickshaw, sir?”, “Change Money, sir?”, “Where are you going, sir?”, “Bus? Train ticket? You want taxi? I’ve got nice boat, sir...” entre outras, muitas outras supostas ofertas. Posto isto, fica a faltar a abordagem geral, aquela comum a todos os autóctones, sejam eles homens de simples negócio ou meros curiosos das caminhadas alheias. “Where are you from?” dizem todos eles em uníssono. Para os primeiros é óbvio o propósito da pergunta. Trata-se apenas da primeira que lançará o isco para as que lhe hão-de seguir, já com os cifrões e os zeros à vista. Para os segundos, porém, trata-se meramente de um modo de aproximação, um modo de, por assim dizer, “quebrar o gelo”, “meter conversa”, uma forma de dizer “olá, até estou mais ou menos curioso por te conhecer.” Aqui começa a comichão de perceber porquê, mas o que é facto ainda mais curioso é que este fenómeno é igualmente extensível a todos os viajantes, venham eles de que canto do mundo vierem. Tanto mais que esta pergunta antecede por largas margem muitas outras, como por exemplo “What do you think about India?”, “How do you feel about India?”, “Where have you been in India?” ou mesmo, e o que é extraordinário, um simples “What’s your name?”. É como se o primeiro factor de identidade, aquilo que pode dizer alguma coisa sobre nós próprios ao nosso interlocutor, fosse esse conjunto de letras na capa de um qualquer passaporte. Como se ser português, inglês, espanhol ou neo-zelandês quisesse dizer alguma coisa de concreto com respeito ao que cada um é.
As fronteiras entre países, já lá dizia John Lennon, não passam de conceitos criados pelo homem. É certo que uma cultura sempre influencia um indivíduo, e que uma cultura é sempre parte de um país ou conjunto de países. Porém, mais certa ainda é a evidência de que existe de tudo um pouco por toda a parte. Pessoas afáveis, interessantes, arrogantes, medrosas, estúpidas, inteligentes, sensíveis… enfim, bestas-quadradas ou corações de ouro. Se assim não fosse, e suponha-se que os portugueses são todos uns amores de pessoas, que maravilha seria viver em Lisboa! Por outro lado, suponha-se que os húngaros são todos uns idiotas, quão difícil seria o dia-a-dia em Budapeste.
Por mim, melhor seria que mais gente me perguntasse o que gosto e o que sinto, quais os momentos mais marcantes da minha viagem, mais gente a contar-me anedotas ou a ensinar-me novos jogos de cartas. Melhor seria que também eu eliminasse tais barreiras, que sentisse mais os outros e que mais por eles fosse sentido, em vez deste aborrecimento de nos inquirirmos uns aos outros sobre a marca de fabrico escrita na etiqueta dos nossos seres. Assim não sendo, resta-me ao menos invejar os japoneses. A eles ninguém lhes pergunta de onde são.

sábado, setembro 30

quinta-feira, setembro 28

To remember while in the storm

Whatever Will Be, Will Be

When I was just a little girl
I asked my mother what will I be
Will I be pretty, will I be rich
Here's what she said to me

"Que sera, sera
Whatever will be, will be
The future's not ours to see
Que sera, sera
What will be, will be"

When I grew up and fell in love
I asked my sweetheart what lies ahead
Will we have rainbows day after day
Here's what my sweetheart said

"Que sera, sera
Whatever will be, will be
The future's not ours to see
Que sera, sera
What will be, will be"


Now I have children of my own
They asked their mother what will I be
Will I be handsome, will I be rich
I tell them tenderly

"Que sera, sera
Whatever will be, will be
The future's not ours to see
Que sera, sera
What will be, will be"


Doris Day

terça-feira, setembro 26

Diários da Índia 5

Caleidoscópio


Pahalgam, Cachemira
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domingo, setembro 24

Paz

A paz. Aqui mesmo, ao alcance dos dedos, dos braços, do corpo inteiro, do ser que se entrega. A paz. Nesse lugar tantas vezes assustador, tantas e tantas vezes medonho, de onde tantas vezes se foge às cegas, sempre com o temor da verdade. O silêncio, a ausências das palavras, da música, do vento, de todo o ruído do mundo. A paz. Neste lugar, aqui mesmo, neste tempo, o agora que a cada momento se esgota e renova. O medo que se conhece de perto, as fraquezas que se reconhecem, a calma e a coragem perante a evidência de se estar, de apenas ser. Ser e estar somente, ainda que não só, na companhia do universo. Olhar à volta e sentir que tudo é, que tudo simplesmente está. Sentir que nada me derruba perante o magnânimo reconhecimento do que sou. A aceitação completa e real de mim mesmo. Fechar os olhos e sentir o gosto ao meu próprio coração, tocar ao de leve no sangue que me escorre por dentro, fechar os olhos e ver que se fecham os olhos por entre a escuridão. A cada fôlego sentir o sossego e sorrir, rir bem alto com esta paz que se constrói por dentro.

Diários da Índia 4

Impermanência


Mahabodhi International Meditation Centre, Leh, Himalaias

A impermanência de todas as coisas, a constante mudança a que está sujeito tudo quanto vive e existe deve ao homem servir não só de aviso como igualmente de consolo. Quando se experimentam sentimentos de alegria e felicidade, é bom que o homem se lembre de que tais sentimentos não irão durar para sempre. Deve então o homem aproveitar tais momentos no seu pleno, ao mesmo tempo que reconhece a necessidade de constantemente os cultivar, pois de contrário esgotar-se-ão ainda de forma mais rápida. Por outro lado, ao experimentar sentimentos de tristeza, raiva ou angústia, é igualmente bom que o homem se lembre de que tais sentimentos não irão permanecer em infinito no contínuo do seu tempo. Deve então o homem esperar, reconhecendo que tais sentimentos, embora impossíveis de evitar, devem agora ser compreendidos para que possam doravante ser da sua vida erradicados.
Em todo o caso, deve o homem aceitar. É fácil aceitar o que o homem define para si mesmo como bom, aquilo que lhe dá prazer e bem-estar. O que é difícil para o homem é aceitar o que para si define como mau, o que, comparado com o que lhe dá prazer, faz o homem sentir o lado escuro da vida. Porém, ao reconhecer que tudo muda e tudo é impermanente, o homem poderá encontrar sossego na certeza de que, tal como aquilo que chama de bom, também o que denomina de mau se esgota na passagem do tempo e na acção concreta dos dias. Por isso, é tolice o homem iludir-se com o que é prazer, agarrando esses momentos como se nunca quisesse que findassem. Em simultâneo, de nada vale ao homem afundar-se na angústia do que é dor e é sofrimento. Ao homem resta-lhe apenas viver, simplesmente viver o que a vida é, sem se agarrar ao que é bom como um náufrago desesperado com medo do que possa ser mau. Todavia, perante o conhecimento do que é para si bom ou mau, perante o reconhecimento de que em tudo se encontra a substância da vida, pode um dia o homem agir no sentido da paz e da felicidade, precisamente esse lugar onde nem bom nem mau subsistem, onde tudo apenas é, onde tudo impermanece como um simples fôlego de respiração.
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domingo, setembro 17

Diários da Índia 3

Varanasi



As cores que se precipitam sobre as águas castanho escuras da morte e da vida, as vozes que vêm gritando e que tanto gritam que parece que falam, que parece que cantam, os cânticos e orações que enchem o ar e se derramam sobre a luz. A luz. O céu reflectindo as águas que por sua vez se estendem até ao horizonte onde o sol se põe e se nasce, as casas velhas de milhares de anos que se esmagam por entre os templos, os telhados que mudam de cor à velocidade louca do dia. Os barcos que se assomam à tona do rio trazendo lá dentro os homens e as mulheres daqui, as mulheres e os homens de longe, os corpos que passam e nadam e nadam alheios à correnteza. A mesma correnteza que consigo tudo arrasta, os cadáveres de animais, os corpos mal queimados das crianças há pouco nascidas sem terem nascido, as velas que nunca se apagam e flutuam no seu curso de prece e de perdão, as folhas e as flores arrancadas às margens e às mãos dos que as abandonaram. A tudo arrasta a corrente, arrasta a morte e arrasta a vida, as mesmas que se vêem dos cais e suas escadarias, das ruas que desembocam cansadas e frenéticas e se precipitam sobre as multidões. As ruas estreitas, apinhadas, o cheiro fétido, podre, os excrementos que das entranhas vomitam a indiferença, os moribundos, os pedintes que de ossos retorcidos se arrastam pelo pó à espera que o pó os coma. Os traficantes, os vigaristas, os peregrinos, os viajantes sem destino, os que pela vida lutam e lutam, os que se quedam alheios ao tempo. A confusão, o caos, os cosmos das mães que carregam os filhos junto a si como se fossem um só ser, as mãos fraternas que passam dadas sem pudor. Os sorrisos das crianças, os sorrisos escondidos das mulheres, os olhares atentos dos homens, a fabulosa presença da humanidade. E outra vez o rio. As gentes que se agitam, que mergulham, que emergem com o riso nos rostos, que de olhos cerrados oferecem aos deuses a água que de si brota, os corpos que se encostam uns aos outros para que se não percam, os corpos que tapam a vergonha com mantos e tecidos vermelhos, amarelos, verdes, azuis, roxos, laranjas, constelações de cores. Os corpos que ardem. Por cima das madeiras que alguém cuidadosamente dispôs para que se façam em nada as vidas que um dia hão-de renascer. Os choros contidos, os silêncios desabafados na contemplação do fogo, as roupas secando junto às chamas como restos de náufragos sem salvação. A Morte. O Homem. A Vida. Deus e o Diabo pintando a mesma tela.
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segunda-feira, setembro 11

9/11

Que esperamos para viver as nossas vidas?



Há cinco anos atrás neste dia, quatro aviões cortam os céus da América – the land of the free – e levam consigo o destino medonho da guerra. A história está mais que contada, por isso todos sabemos que destino tiveram essas aeronaves. Três mil vidas se perderam nesse dia. Num ápice. Porém, essas vidas não estavam em guerra, não habitavam parte nenhuma do globo onde ela tivesse lugar, não corriam risco algum. Eram “apenas” as vidas das gentes ditas normais, ainda por cima respirando no lado mais desenvolvido do planeta. Uma absoluta e perfeita banalidade. A vasta maioria dessas vidas limita-se a acordar para mais um dia, provavelmente toma o seu café, come a sua torrada, lê o jornal, as notícias do dia e os resultados do desporto, beija os filhos antes de os deixar à porta do colégio, estaciona o carro, apanha o comboio que a há-de levar ao destino final, faz o mesmo percurso de sempre até chegar ao seu escritório de sempre, as secretárias repletas de papéis pousados que mais tarde hão-de voar como se estivéssemos diante de uma parada, os ecrãs apagados prestes a ganhar vida, a vida prestes a apagar-se. Há as conversas de circunstância, os cumprimentos rotineiros, os sorrisos dos chefes, a cumplicidade entre colegas, as queixas, os lamentos, os triunfos sussurrados em segredo, os feitos anunciados para glória da equipa, o trabalho faz-se. Há os últimos olhares para as fotografias emolduradas dos entes queridos, a contemplação do firmamento, como está azul o céu lá fora, é Verão, as férias ainda não há muito que se acabaram, as recordações dos mares, das praias, das cidades de um outro mundo ao qual jamais haverá regresso. Há a correria dos telefones, das máquinas fotocopiadoras, o tinir dos elevadores, o dia que começa.
Nós, a monumental maioria de nós, não trabalhava no World Trade Center ou no edifício do Pentágono nem nesse dia, nem noutro dia qualquer. Somos o resto do mundo, os que do sofá assistiram a tudo pela televisão, os que estão vivos. A grande maioria de nós fez talvez nesse dia o mesmo que fez e faz em tantos outros. Acordámos para mais um dia, tomámos o café, lemos o jornal, beijámos os filhos, estacionámos o carro, apanhámos o comboio, ligámos o computador, sorrimos para o chefe, conversámos com os colegas, queixámo-nos, lamentámo-nos, partilhámos em silêncio triunfos e anunciámos feitos. Trabalhámos, olhámos as fotografias emolduradas da nossa cara-metade, lembrámos as férias, o mar azul, os lugares a que talvez um dia regressemos, repetimos a mesma rotina, os mesmos gestos, os mesmos rituais da modernidade.
E todos sonhámos. O corrector da bolsa dirigindo-se ao seu gabinete lembrando o fascinante livro de aventuras que lera na noite anterior, a professora de liceu caminhando ao longo da avenida pensando no amor que um dia recebeu, que um dia há-de receber, o empregado de café sorrindo de exaltação com as viagens que um dia ainda há-de fazer, a secretária abnegada olhando o segurança enquanto inventa as frases que lhe dirá entre os lençóis que hão-de partilhar, a motorista do autocarro atenta ao trânsito enquanto se pergunta para quando a casa sobre o mar, o advogado que um dia há-de deixar tudo para trás e habitar a montanha do seu silêncio, o operário, a contínua, o jardineiro, a simples funcionária e o sofisticado engenheiro. Nós. Nós todos e eles, os que sonham e sonhavam, os que se perguntam e perguntavam quão diferente pode a vida ser, os que dizem e diziam que isto está tão mau que já nem vale a pena lutar, os que ainda assim diriam que podia ser pior mas como seria bom que fosse diferente. Todos nós iguais, como esses outros a quem no dia mais normal das suas vidas sucedeu a maior das improbabilidades. Os homens e as mulheres sentados às suas secretárias lendo a folha de serviço, o balanço da contabilidade, o jornal sobre coisa alguma, ao mesmo tempo que milhares de toneladas de plástico e metais são projectadas de encontro às suas janelas. Nesse dia, há cinco anos atrás, morreram “apenas” pessoas normais vivendo o mais banal dos seus dias, lembrando-nos que basta um instante para que as nossas vidas não tenham mais por onde esperar.

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domingo, setembro 10

Diários da Índia 2

O rapaz voador


Sonamarg Valley, Cachemira
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sábado, setembro 9

Diários da Índia 1

Quando se regressa deve-se regressar por inteiro. Tal como quando se parte. Não deixar nada para trás, nada que para trás ficando corra o risco de nos acompanhar até aos destinos para onde caminhamos. Por causa do excesso de peso, porque a bagagem que podemos na vida carregar tem um limite e não podemos dar-nos ao luxo de trazer o que não nos faz falta. Nova Deli, Cachemira, Himalaias, Varanasi, Taj Mahal, tudo para trás ficou e todavia tudo permanece. Em Agosto do ano dois mil e seis entrou-se-me um país pelo corpo adentro, uma terra de confusões e multidões, uma terra de silêncios e de cores às centenas, uma terra sem lugar algum feita de muitos lugares. A Índia. É Setembro, é cedo, é a madrugada dos sonhos que se viram feitos em cheiros e sabores e dentro das minhas mãos. Aguardo. O regresso tarda, mas não assusta que tarde. Há-de vir por inteiro e consigo trazer o que não ficou para trás, o que é essencial e em mim permanece.

domingo, setembro 3

Poesia Toda


O poeta, assombrado pelo ser e pelas noites onde encontra impossível o descanso, escreve ao correr dos anos as palavras que o definirão. Vai pelas páginas como quem atravessa campos e desertos rumo à terra prometida, sozinho em si até ao ponto em que nada mais escuta senão o seu próprio silêncio. Fecha as portas da casa e fica imóvel sobre as páginas, alheio ao tempo que o envelhece, o tempo indiferente ao labor sofrido que emprega em cada verso, o tempo que se esquece e pára e que o poeta não sente. Porém, não se importa o poeta nem com o tempo nem com a fome nem com a outra vida que do lado de fora das paredes da casa vai passando sem aviso. Escreve porque é esse o seu trabalho, o seu desígnio, a sua função na metafísica roda dos elementos. Nenhum outro destino ou realização lhe parece mais natural que estender em telas de folhas aquilo que por dentro o pinta. A casa vai assim ficando vazia de espaço e por todo o lado se amontoam páginas e cadernos que um dia o poeta deixa finalmente sair pela janela. Cá fora, alguém os agarra e os leva para que o mundo possa enfim espreitar por dentro a alma de outro ser.
Vêm então os livros, os volumes de folhas presas que se aninham em estantes onde as gentes vêm para ver e tocar o génio do poeta. Vêm o reconhecimento, as láureas e as ilustres nomeações que fazem do poeta um homem distinto e honrado. Ano após ano, década após década, o poeta envelhece ao ritmo de edições e distinções. O seu nome ilustra capas, as suas palavras preenchem as obras que outros seguram e percorrem e para si tomam como suas.
De tanto deixar que o seu nome e ser percorram o mundo, chega o instante em que o poeta pouco mais é que esse mesmo nome ilustrando capas e essas mesmas palavras que se lhes seguem. Fica esquecido dentro da casa e percebe que para o mundo nada é senão letras cuidadosamente conjugadas lado a lado consigo mesmas. O poeta, já cansado e farto de si e do mundo que afinal havia escrito a sua poesia, decide deixar-se levar pela cessação derradeira da existência. O poeta morre. Melhor, morre-se-lhe o corpo e a mente, os pensamentos e as ideias interrompem a sua natural cadência, os cabelos brancos e a pele enrugada deixam de embranquecer e de enrugar. A sua alma, se é que a tem, eleva-se ou desce para um lugar qualquer que não se pode experimentar. Mas antes de todo este abandono, o poeta olha pela última vez a terra que lhe fica com o corpo e imagina e contempla os lugares onde descansam o seu nome e as suas palavras. Acredita que afinal não é bem a morte que lhe acontece, antes que subsiste a sua existência no fruto do suor e do labor que empregou na construção de cada verso, no erguer de cada estrofe que agora habita os cantos do mundo. Fecha o olhar sorrindo e já não vê que o tempo um dia há-de percorrer esses lugares e que deles levará as capas com o seu nome e as folhas com os seus versos. Tudo desaparecerá excepto um último volume que resta na biblioteca de uma cidade longínqua ou um amontoado de páginas envelhecidas na prateleira de uma livraria. Na capa desse último volume, ler-se-á Poesia Toda e nas mãos da mulher de chapéu vermelho que agora o folheia descansarão os seus versos, mil oitocentas e trinta e quatro páginas resumindo uma vida.

sexta-feira, setembro 1

19 parágrafos para afixar atrás da porta.
32 linhas para ler.
412 palavras para sentir.
1953 caracteres para levar aonde quer que se vá.

Sente que respiras.
O espaço ao teu redor é simultaneamente uma extensão e uma redução de ti mesmo.
És um indivíduo, mas apenas uma ínfima parte de um todo e, por isso mesmo, individual.
Escreve todos os dias a frase: Presta atenção.
Diz todos os dias a frase: Mantém-te consciente.
Repete silenciosamente todos os dias a frase: Eu estou aqui agora.
Lembra todos os dias a frase: A viagem da mente ao coração tem a distância de um gesto.
Estás a caminho de ti mesmo. Não avanças, recuas. Ai de ti se avanças sem saber que recuas.
Pára as vezes que forem necessárias quando forem necessárias. Nada se pode sobrepor à tua paz.
Todas as tuas emoções geram energia. Algumas, como a raiva e o amor, geram uma energia imensa e difícil de controlar. Porém, aprende a reconhecer essas emoções. Aceita-as e controla-as, vivendo-as. Estás assim mais perto de usar sabiamente toda essa energia em ti gerada.
Aceita. O que é, simplesmente é.
Vive para os outros, não em função dos outros. Quando estiveres presente, abre o coração. Tem o cuidado de estares muitas vezes presente apenas para ti próprio. Para que não esqueças e sintas o teu próprio coração.
Reconhece a primeira instância do teu entendimento. Confia na tua primeira consideração. Reconhece que nove vezes em dez o que se segue e contraria o teu primeiro entendimento é o trabalho ininterrupto e tantas vezes desnecessário da tua mente.
Vive os teus rituais. Cria-os e recria-os, mas nunca faças com que deixem de ser rituais.
Procura, sente, vive em comunhão com os outros. Pouco ou nada poderás fazer que alguma vez os transforme em outra coisa além daquilo que são. Quando são os outros que contigo não vivem em comunhão, aceita e escolhe ou não virar as costas, para que não jogues com eles o mesmo jogo.
O mundo é feito exclusivamente de factos. Os factos, só por o serem, já são impossíveis de alterar. Podes criar ou descobrir novos factos, mas o resto são apenas visões, interpretações e julgamentos. Atenta e aceita que, apesar de não comportarem em si nenhum facto, todos esses actos de ver, interpretar ou julgar são igualmente factos.
Duvida. Sempre. A começar por ti mesmo. A dúvida pode constituir um enorme passo para a humildade.
Duvida. Nada sabes a não ser o que em ti reside, mas ainda assim há muito que permanece por descobrir.
Mantém-te presente. Por inteiro. Um ser no meio de um só todo.

quinta-feira, agosto 31

Retorno


O homem nasce e desde esse instante começa a ser outro. Outro que não ele, outro ser que ocupará o lugar daquele que verdadeiramente é. Depois, é a história que se conhece: esse outro acaba por se confundir de tal modo com aquele que é que o homem deixa de saber ao certo que verdade é afinal a sua. Começa e vai pela vida acumulando experiências e saberes, as vidas muitas vividas no espaço de uma só. E tantas são essas vidas que se acrescentam ao verdadeiro ser, outras tantas as que fazem crescer o outro que igualmente se julga verdadeiro. O homem vai e eis que a muitos sucede que a dado ponto a confusão se torna em ruído imenso, e difícil é já saber que homem afinal sobrevive por detrás daquele que supostamente vive. Há então quem desista e se entregue à modorra fácil dos dias iguais, quem ao fim do dia lhe sinta a alma bocejar do tédio e da angústia de não encontrar a vida que em si devera ter vivido. Estes, tão certa e fulminante é a sua infelicidade, a lugar algum irão, pois ficarão para sempre sendo um outro qualquer que realmente não vive. Outros há porém, que em face do coração que aos poucos se vai extinguindo, escolhem não desistir. A esses assoma-os a evidência de lhes restar apenas fazer o caminho ao contrário, de partir do outro incrustado no seu ser e ir em busca da verdade que além dele reside. Estão, a partir desse instante, irremediavelmente condenados ao sofrimento, pois esse caminho só pode ser feito à custa do conflito entre o outro e o ser verdadeiro, só pode ser percorrido pela descoberta do que no mais interior de si reside, um ser esmagado pela vida que não viveu. Crucial e necessária é a coragem, vital e decisiva é a determinação para que o homem não se deixe quebrar pela dor de a si mesmo se olhar de frente. Porém, aos que se aventurarem, aos que a si mesmos se forem libertando dos grilhões que outros por eles forjaram, calhará a recompensa maior de todas. Chegarão mais perto do lugar de onde um dia partiram e donde nunca mais se encontraram, agora repletos do conhecimento de um dia se terem perdido. Esse lugar fica longe, longe demais para que uma só vida seja suficiente para o alcançar e disso sabe o homem ao reconhecer quão incompleta é a sua natureza. A viagem, porém, só por si será suficiente, pois daí em diante será como viver de novo a vida e desse reencontro resultará a vivência plena da verdade. O homem existirá então na glória maior de se ser.

A História do Padre Anchieta

No meio da selva, o Padre Anchieta tinha urgência em chegar a uma aldeia. Por isso, pediu aos carregadores índios que andassem mais depressa. Ao terceiro dia de caminho, os índios pararam. O Padre perguntou-lhes porque é que não andavam, sabendo como sabiam o quanto ele precisava de chegar à aldeia. Os índios responderam: “É que nós temos andado depressa de mais e a nossa alma ficou para trás. Temos de ficar aqui à espera que ela chegue e entre outra vez no nosso corpo para podermos continuar.”