quarta-feira, março 31

Pouco

31.03.2010
Em preparação para mais uma viagem, chego sempre à mesma conclusão. Só existem duas coisas que não podemos deixar em casa: o passaporte e o cartão de crédito ou multibanco. Esta evidência (afinal ainda disputável. Haveria quem de bom grado discutisse que só mesmo o passaporte é que tem de ir) não cessa de me deixar esmagado pela futilidade da vida de consumo que levamos. É certo, vai-se com o que se vai, convém deixar duas coisas essenciais também: a casa e o emprego. Ou de contrário, estamos tramados no regresso (outra vez uma evidência disputável. Empregos há outros e o problema da casa resolve-se se não regressarmos). Mas mesmo assim, o ponto aqui é o quanto de pouco é de tão essencial.
Não é que leve só o passaporte. Alguma roupa vai também e para não falar desse clássico bagageiro chamado escova de dentes. Mas ainda assim, pouco. Não é preciso entrar pela filosofia urbana new age, pela espiritualidade mal amanhada do budismo e do esoterismo ocidental. É um facto: precisamos de muito pouco.
Num clássico destas coisas do "soul searching", Henry David Thoreau escreve no seu Walden que o que de facto é fundamental para o ser humano é manter-se quente. Logo, o que é fundamental é tudo o que concorre para isso, sendo que por "quente" pode mais ou menos entender-se o que nos mantém vivos e saudáveis. Coisas como água, comida, fogo, e outros que tais. E claro, o que nos mantém quentes por dentro. Esta conclusão talvez não seja de Thoreau, mas convém lembrar outra frase de outro grande homem de visão, essa que sustenta que "nem só de pão vive o homem".
Voltando à viagem, olho a mochila e vejo o que tenho lá por dentro. É pouco, mas pronto, tenho de me dar o desconto de ser um homem do meu tempo. Seja como for, o que interessa é a liberdade. Quanto menos se carrega, mais de essencial levamos connosco. Quanto mais leves, mais livres e é disso mesmo que trata a essência do espírito humano.

quinta-feira, março 18

Anunciação

18.03.2010
 
Enquanto há vida, há esperança, já lá dizia o outro. Eu digo que enquanto o Inverno não durar para sempre, as nossas vidas poderão melhorar. E é de mim, ou anda qualquer coisa no ar a anunciar a Primavera? Não, não são as datas.
(há celebração combinada para Domingo. 21 de Março pode bem ser o ponto de viragem no desenvolvimento social e económico deste país.)
É mais que isso. A Primavera vai chegar, tenho a certeza. Hoje saí do emprego ao fim da tarde e o ar cheirava a doce. Isso mesmo, a doce. Não estou a ser sentimentalista, "doce" é o único adjectivo que encontro para descrever o cheiro do ar. Depois do jantar, deu-me para descer a rua e comer um pastel de Belém com quase sabor a férias. E vai daí, não desisti. Voltei para cima e fui subindo a avenida enquanto as árvores todas derramavam o tal doce do cheiro. Parecia um mergulho numa outra época. Devia estar mesmo completamente farto do Inverno para tanta euforia à volta de um leve aroma de calor.
A vida vai-se enchendo de esperança. Faço pública a partilha da euforia. A Primavera vem aí, que se lixe a crise.

segunda-feira, março 8

Crónica um nadita deprimente


 08.03.2010
  Já aqui escrevi que odeio o Inverno. Já aqui disse por diversas vezes que odeio o Inverno. Já aqui fiz questão de muitas vezes frisar que odeio o Inverno. E nada. Lá fora, a chuva cai irrepreensivelmente, o dia inteiro como se fosse noite. O Verão, esse, parece uma memória distante, como uma infância ou uma experiência para sempre terminada. Começo a notar que não sou só eu. Por toda a parte, ouço conterrâneos queixando-se, reclamando, afirmando com certezas de meteorologista que este sim, este é que é o pior Inverno de sempre. Até uma conceituada revista veio dizer que desde 1860 que não chovia tanto em Lisboa. Se for esse o caso, faz sentido. Este é o meu pior Inverno e o de toda a gente que conheço. Talvez por isso, comece a generalizar-se um certo sentimento de frustração que ninguém consegue explicar muito bem. Podia ser o Plano de Estabilidade e Crescimento, os salários congelados, o aumento de impostos, a subida galopante dos preços, o desemprego. Mas não. O que pesa é a chuva e o frio, a ausência daquela luz solar bem portuguesa com que fazemos a fotossíntese da alma. A continuar assim mais valerá que nos tornemos nórdicos. Ao menos, o nível de vida subia um pouco, sempre era uma forma de compensar a modorra dos dias cinzentos. Assim é que não. Toda a gente sabe que os portugueses não primam exactamente pela excelência em termos económicos.
(apesar do consolo dos gregos. É bem feita, para não ganharem um campeonato em terra alheia).
Está bem, mas até à data sempre tínhamos um dos melhores climas do mundo para atirar à cara dos barões do capital estrangeiro. Agora, vai-se a ver, nada. Nem um calorzinho para a amostra. Assim não compensa. Vá lá que continuamos a ter um dos primeiros-ministros com mais notícias por metro quadrado e que, ao que parece, o Benfica vai mesmo ser campeão. É fraca consolação, sobretudo para um sportinguista com pouco inclinação para a política de controvérsia. Já disse que odeio o Inverno?